Premiado, doce e encantador, filme na Netflix vai tocar profundamente sua alma e te fazer rir e chorar Divulgação / Cacerola Films

Premiado, doce e encantador, filme na Netflix vai tocar profundamente sua alma e te fazer rir e chorar

Casamentos podem ser a oportunidade perfeita para que se unam não duas pessoas que trocam juras de amor eterno que não resistem às luzes esmaecidas da aurora, mas paranoias de vidas fraturadas em alguma curva imprecisa do caminho, e por uma razão compartilhada só pelos dois, são justamente essas suas debilidades que fazem com que o erro imperdoável da união transforme-se numa relação que surpreende pela lealdade com que os cônjuges enxergam-se um ao outro. Quando compreendem, não raro à custa de muitas batalhas contra seus moinhos de vento, que estão juntos para descobrir o que, afinal, os impele a seguir tentando manter sua história e não para ceder lugar a fantasias pueris sobre amor eterno e tórridos folguedos de alcova para além da idade adequada, amantes — ou esses dois elementos que, queiram ou não, viram um único ente às vistas da sociedade — têm uma possibilidade exponencialmente maior de serem felizes. Ainda que essa bonança nunca se vá completar e pareça sempre precisada de um reforço, até que a fonte seca de vez.

As agruras de um casamento que se desdobra em dramas que se arrastam pelo tempo, até que encontra-se com a tragédia anunciada que o rondara desde sempre são um assunto a respeito do qual todos temos opiniões a dar e lições a aprender, malgrado nunca tenhamos nos casado com ninguém ou venhamos a fazê-lo algum dia. A mexicana Mariana Chenillo faz de um casal de idosos os personagens ideais para  discorrer sobre a força das tradições, embaladas numa prática religiosa que tresanda a radicalismo, intolerância e sadismo, e sua influência num lar que se vai liquefazendo aos poucos, empurrado por uma situação diante da qual esses dois infelizes — e mais todas as pessoas que, direta ou indiretamente, são tragadas para o centro de um furacão silencioso que devasta qualquer um que se lhe insinue digno de fazer frente. “Cinco Dias sem Nora” (2008) é o relato ácido de um universo de sentimentos nobres como amor, empatia, altruísmo, solidariedade, rachado por um foguete tomado de cólera, que não tem intenção nenhuma de poupar quem quer que seja. Uma crônica atemporal que alerta para os perigos do “até que a morte os separe”.

No transcorrer da magra hora e meia de projeção, não resta espaço para nada que não seja essencial, e Chenillo dota seu filme de sequências que vão sempre direto ao ponto, sem prejuízo do sentimento, muito pelo contrário. Mesmo esgrimindo discussões austeras, que dificilmente concedem margem para tergiversações oportunistas ou subterfúgios covardes, o texto da diretora consegue a um só tempo valorizar a pletora de emoções que verte dos conflitos que propõe ao passo que nunca condescende com o melodrama fácil. Em seu primeiro longa, Chenillo já exibe autoridade incomum sobre seu ofício, cercando-se de estratégias que a auxiliem no andamento mais propício a cada subtrama. Os tipos de que lança mão são meio farsescos, mas ainda assim não deixam de ser absolutamente verossímeis, igualzinho os que se acham em famílias simples ou abastadas, sujas por uma nódoa de vergonha ou que gozam de uma felicidade — ou uma sensatez — que perdura, a despeito das adversidades maiores ou menores de que são acometidas.

Nunca se fica sabendo muito bem por que Nora Kurtz se determina a tomar a atitude que permeia todo o enredo, e, o principal, por que nega-se a receber tratamento, como se se sentisse sempre um degrau abaixo do restante da humanidade e, então, tivesse de passar a vida se sabotando. Nora, surgida apenas em flashbacks na interpretação precisa de Marina de Tavira e devidamente imóvel quando Silvia Mariscal assume a personagem, decerto era uma pessoa de espírito: antes de levar a cabo seu plano, explicita tudo quanto precisa ser feito para o sêder, a ceia de Pessach, data que celebra o fim da escravidão dos judeus no Egito. É justamente esse o fecho que amarra tudo quanto acontece de relevante na história — e a refeição em que a família de Nora se confraterniza e vive mais um reencontro é mostrada numa passagem rápida, insinuando que, no instante em que acontece, as complicações em torno do conflito envolvendo a personagem já teria recebido um arremate. Enquanto essa hora não chega, contudo, é uma experiência enternecedora e saborosa apreciar a performance de Fernando Luján (1938-2019) como José, o ex-marido que se encarrega das providências mais imediatas e comezinhas enquanto aproveita para dar alfinetadas sutis (e outras nem tanto) na hipocrisia de seus parentes e das outras partes que entram em cena, muito mais preocupados com sua frágil dignidade do que com a situação de Nora.


Filme: Cinco Dias sem Nora
Direção: Mariana Chenillo
Ano: 2008
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 9/10