O thriller subestimado de Chadwick Boseman está na Netflix e você não assistiu

O thriller subestimado de Chadwick Boseman está na Netflix e você não assistiu

As decisões que mais impactam a vida de alguém nunca são tomadas sem uma boa dose de medo. Por mais que reflitamos, sempre nos assaltam as dúvidas que vão nos torturando com todo o cuidado, malgrado estejamos já convencidos quanto ao que é necessário ser feito — o que, evidentemente, não significa nem de longe que tenhamos chegado ao melhor termo, ou que o resultado das tantas elucubrações de mil noites insones, de caminhadas solitárias pelas ruas desertas, de mais uma infinidade de sentimentos que não conseguimos digerir não vá se desdobrar em mais angústia por não se saber por quanto tempo essa sentença vai se mostrar exequível. Se muitas vezes a vida tem todas as cores de uma farsa, por mais real e furiosa que seja, em outras tudo é estranhamente sério, sobrando pouco espaço para fantasias de qualquer natureza ou tergiversações quanto ao caráter justo ou injusto do que se encontra posto. Momentos em que viver mais parece um teste, em que as respostas precisas têm de ser dadas, ainda que os sonhos insistam em gritar.

Sagas familiares começam pelos motivos mais insólitos, mas sempre têm um propósito em comum: enaltecer a necessidade de se manter os vínculos com o que somos desde antes que soubéssemos o que nos prepararia o mundo. Há quem se perca pelos descaminhos que se vendem como um atalho para felicidade, do mesmo modo que existem os que não se conformam com aquilo que todos julgam como o natural, e dessa luta emergem as histórias de sofrimento e resistência de que é feita a própria humanidade e lhe conferem sentido. “King: Uma História de Vingança” (2016) é exatamente o que sugere o título, mas não só. No filme, Fabrice Du Welz capta à perfeição o espírito de autopreservação de um homem, mesmo que já tenha perdido boa parte de tudo quanto poderia socorrê-lo em sua busca por dignidade. Leva algum tempo, mas o anti-herói que protagoniza essa história percebe que brigar de igual para igual não é a melhor saída. É preciso ter o mesmo sangue frio de seus inimigos caso deseje levar seu plano de desforra adiante.

Jacob King não tem esse nome por acaso. Chadwick Boseman (1976-2020), um dos atores mais elegantes que Hollywood já conheceu, dá vida a um legítimo guerreiro tribal da África do Sul, um homem que passa por cima de seus brios em nome da única causa que considera digna de seu esforço. O espectador carece praticar sua boa vontade e dar um voto de confiança ao forasteiro, que deixa seu país com a cara e a coragem rumo à América sem lenço nem documento alegando que está a passeio, uma vez que o roteiro de Oliver Butcher e Stephen Cornwell só desfaz todos os mal-entendidos na derradeira sequência. Logo se conhece sua verdadeira motivação, o que mais o atrapalha que ajuda: sua irmã Bianca, de Sibongile Mlambo, está sumida há meses e o que ele descobre a respeito da moça só faz com que suas preocupações recrudesçam. Quando Du Welz dirime qualquer chance de equívocos residuais, graças à intervenção do comerciante vivido por Paul H. Kim — reforçando o conceito dos Estados Unidos como uma nação etnicamente diversa, malgrado nunca se toque no assunto com todas as letras —, e King se depara com a verdade, Boseman vira a chave de seu personagem, que se lança à caçada aos algozes de Bianca, tendo por pista mais relevante Armand, o filho de seu então namorado, um traficante de drogas conhecido pela maneira cruel como trata quem lhe deve dinheiro. O problema é Armand, papel de Diego José, também está desaparecido.

Aporta ao enredo um núcleo completo de coadjuvantes, com destaque para a prostituta Kelly, encarnada por Teresa Palmer (com quem o protagonista nunca tem nada, por mais que a garota se derreta frente a seus olhos mais fundos que um brejo e o sorriso de mil dentes cintilantes como pérolas), e o gângster Wentworth, de Luke Evans, líder de uma quadrilha formada por mafiosos do Leste Europeu. Independentemente da bagunça conceitual, “King: Uma História de Vingança” vale a apreciação por aspectos colaterais, a exemplo da fotografia mesmerizante de Monika Lenczewska e, claro, para matar a saudade de Chadwick Boseman, um ator maiúsculo para muito além de “Pantera Negra”.


Filme: King: Uma História de Vingança
Direção: Fabrice Du Welz
Ano: 2016
Gênero: Thriller
Nota: 8/10