O filme certo, na Netflix, para esquecer os problemas e aproveitar domingo Divulgação / Elevation Pictures

O filme certo, na Netflix, para esquecer os problemas e aproveitar domingo

Decerto não há luta mais inglória que aquela que travamos com nós mesmos. Tentar ir contra a própria natureza desencadeia uma espiral de sentimentos de toda ordem, com que só ao cabo de muito tempo, quiçá o tempo de toda uma vida, somos capazes de lidar. Em “O Mundo como Vontade e Representação” (1818), calhamaço em que o polonês Arthur Schopenhauer (1788-1860) urde sua ideia de se estar no mundo como meramente uma vontade de se estar no mundo, ou seja, a vida seria só uma prospecção do homem sobre seus desejos mais indefinidos, o filósofo crava um diagnóstico cruel quanto à vida. Perdido num emaranhado de ilusões e autoengano, o homem não sabe querer, pois, uma vez que quer, já principia a deixar um rastro de destruição que se estende por sítios onde sequer esteve algum dia — constatação irrefutável nestes tempos em que o planeta é, verdadeiramente, a aldeia global preconizada por Herbert Marshall McLuhan (1911–1980). Portanto, há que se negar toda vontade, mesmo (ou em especial) as que, aparentemente, possam induzir a supostas boas intenções. E mais notadamente ainda as que brotam das idiossincrasias que não podemos partilhar com ninguém.

Somos os vilões e os mocinhos da história de nossas vidas. Escondemos segredos que não nos atrevemos a deixar vir à superfície, sob pena de um arrependimento de que talvez nunca nos livremos. Naturalmente, sempre existem as ocasiões que nos obrigam a sair do conforto de nossos esconderijos e buscar a luz que, nos fira os olhos, há de nos apontar o novo caminho que buscávamos há tanto tempo. Os momentos em que estamos mais perdidos são justamente aqueles que acenam com mais alternativas de virada — o que não quer dizer que tudo há de correr como julgamos conveniente —, atestando que a vida é mesmo um mistério dos mais irônicos. Jeff Chan põe sobre o protagonista de “Code 8: Renegados” (2019) um rol de atribuições que só mesmo alguém dotado de superpoderes é capaz de suportar. Mas neste caso, o feitiço pode virar contra o feiticeiro: ser tão diferente dos outros implica problemas molestos demais.

A fictícia Lincoln City é uma metrópole que canibaliza seus habitantes. Ao longo dos anos, cidadãos antes privilegiados graças a dons especiais como o de ligar aparelhos eletrônicos e provocar explosões por telecinesia, usando apenas a força do pensamento, caem em desgraça, precisamente por causa da pressão social que os tacha de desonestos por terem conseguido os melhores empregos e o primeiro lugar nas universidades mais prestigiadas, agora têm de se contentar com empregos normais ou se submeter a uma averiguação rigorosa do Estado, que decide se emite ou não a licença que os autoriza a se apresentar como superpoderosos — o que, definitivamente, não é nenhuma vantagem, uma vez que a substância responsável por enviar essa mensagem ao cérebro já fora descoberta e sintetizada. O primeiro conflito do roteiro de Chan e Chris Pare é quanto à ilegalidade do procedimento: o novo composto químico dá origem à psyke, uma droga alucinógena temida pela dependência que provoca, o que rapidamente se torna uma epidemia de difícil controle. O diretor-roteirista vai dando a seu filme a gravidade de uma crônica sociológica crescentemente incômoda à medida que o espectador passa a conhecer melhor o personagem central. Connor Reed, o adorável perdedor vivido por Robbie Amell, não tem a menor vontade de se valer de sua condição outrora especial para obter vantagem sobre os simples mortais, mas se inclina a fazê-lo no intuito de tentar salvar a mãe, Mary, de Kari Matchett, que está à morte com um câncer cujo tratamento eles não podem bancar.

Em excetuando-se o argumento meio batido do outsider destacado que se arvora em salvador do mundo, mas que não consegue poupar-se a si e nem aos seus — vistos em produções ousadamente autorais a exemplo de “Eles Vivem” (1988), de John Carpenter —, “Code 8” tem lances memoráveis, mérito de Alex Disenhof, o diretor de fotografia. Lembrando um pouco “X-Men”, todavia muito mais cabeça, o filme nem parece do mesmo Jeff Chan que dirigira “O Mistério de Grace” apenas cinco anos antes. Mudou muito, e para a melhor.


Filme: Code 8: Renegados
Direção: Jeff Chan
Ano: 2019
Gêneros: Ficção científica/Ação
Nota: 8/10