Loucura nossa de cada dia

Loucura nossa de cada dia

Imaginemos a vida como um ser único e universal e que faz uso de todas as unidades biológicas para manter-se a si mesma. A vida que me anima, que move uma ameba, que sustenta um vegetal seria a mesma. Cada ser, cada unidade metabólica é apenas o receptáculo da energia da vida. Assim, todos os movimentos dos seres vivos seriam no sentido de manter viva a chama da vida.

Quando me apaixono por uma mulher é para a perpetuação da espécie, que vai passando de geração em geração, por meio dos gametas. A natureza quando estende a primavera nos campos e faz a árvore florescer é porque recebeu estímulos da vida. Os seres vivos cumprem tarefas altamente especializadas. Tudo em nome da continuação desse ente enigmático chamado vida.

Richard Dawkins, zoólogo neodarwinista, em seu livro “O Gene Egoísta”, sustenta que o gene é a unidade fundamental da evolução e não o indivíduo da espécie. Assim eu, você, todos nós que temos impressão digital e CPF seríamos apenas uma ferramenta de perpetuação dos genes, que por sua vez seriam os fios condutores da vida.

Somos apenas ferramentas que depois de usadas serão impiedosamente jogadas fora, feito aqueles cachorros de palha, na metáfora chinesa utilizada pelo filósofo John Gray. Ou como o Judas de malhação, numa figura mais familiar à nossa cultura. Enquanto os genes, estes sim, seguirão lépidos e fagueiros, atravessando geração após geração.

Seria também a loucura uma entidade dotada de certa autonomia, que ao lado da publicidade e da religião, disputa nosso coração e faz uso estratégico de nossa mente para estabelecer sua existência e aprontar seus desatinos?

Recorrendo a visão semelhante à anteriormente exposta, poderíamos dizer que sim. Que a loucura é uma entidade que paira sobre nossas cabeças, como uma nuvem de tempestade, e que de vez em quando, pelos critérios que a loucura tem, lança seu raio certeiro, escolhendo um cérebro para se instalar.

E a loucura parece ser tão ou até mais estratégica do que a vida. Mesmo sem recorrer a tratados de psicólogos e analistas, podemos perceber o quanto a loucura adaptou-se nas últimas décadas.

Tenho a impressão de que a loucura fez parcerias ou então fundou joint ventures com o mal. Antigamente, de costume, quando a loucura se apossava das faculdades mentais de uma pessoa, ela as tomava por completo.

Sobrava muito pouco ou até nenhum espaço para a lucidez. Dessa forma, a sociedade podia criar, e como de fato criava, manicômios onde internava os aluados de todo gênero. E um louco internado pouco mal poderia fazer à sociedade. A não ser pelas despesas de manutenção de um ser improdutivo e a dor da família de ter um ente seu que, além apartado do convívio, não comungava da mesma noção das coisas.

Isso era antigamente. Dos meados do século passado para cá, a loucura vem fazendo uma reengenharia completa em seu método de atuação. Após a aventada parceria com o mal, a loucura não quer mais tomar nenhum cérebro por completo. Ela toma apenas uma parte e até fomenta a inteligência na parte sã. O louco não é louco full-time. Ele é louco só sazonalmente. Daí não fazer sentido segregá-lo do convívio social, porque na maior parte do tempo ele é lúcido e produtivo.

Mas de vez em quando, a loucura emerge da parte puba da mente, da ala mais sombria do ser e provoca estragos devastadores, cumprindo com eficácia um dos lemas mais caros dos programas de qualidade total do capitalismo turbo: fazer mais com menos no menor tempo possível.

O mais preocupante é que cada vez menos a loucura opera para o bem, como aconteceu em tempos idos com São Francisco de Assis e Madre Tereza de Calcutá.

Definitivamente a loucura trocou seus métodos e, do ponto de vista do mal, por outros muito mais eficazes. Já se vão longe os tempos em que normal era normal e louco era louco. Normal ficava em casa e andava na rua. Louco era trancafiado em manicômios.