O corpo é uma droga

O corpo é uma droga

Eivado de hipocrisia, reencontrou-a no horário desmarcado. Um acaso dos diabos. Eram dois raios que volta e meia caíam sempre no mesmo lugar. A cama. Largavam-se na cama. Alargavam os horizontes. Zoneavam. A cama era como um campo de entrega, de colheita e de fastio. Ali se plantava. Ali se colhia. Escolheram qualquer colheita, o que viesse já estava de bom tamanho para além do estio. Cultivavam os corpos em horas de recreios, de brincadeiras, de diversões num parque de tempestades sinápticas e de ribombares sincrônicos de gônadas em desatino.

Destino não havia. Destino era conceito criado pela ignorância. Conheceram-se num sarau de poesia falada, onde se nadava contra as correntezas em exercícios de sublimação e de altruísmo. Havia pouquíssimas pessoas no local, uma meia dúzia de gatos pingados com mais sete dúvidas, o que não deixava de ser bom, o que não deixava de desatender às expectativas ordinárias de uma parcela considerável de cidadãos que não davam a mínima para a cultura, que não tinham saco para sustentar a democracia, que não se empenhavam em acabar com a fome e com o perrengue financeiro de milhões de coirmãos, quem dirá, se dispor a frequentar os conclaves literários.

Viviam-se tempos híbridos de ira, de violência e de apologia à estultícia. Quanto mais parvoíce, pior. Num imbecil esforço coletivo, a meta de muita gente instruída era justamente que tudo piorasse, ao menos, para os outros. De maneira geral, a sociedade não apenas continuava brutalizada, desigual, injusta, como expunha os seus podres, as mais deploráveis mazelas do ser humano, desta feita, com esforços desavergonhados de se esbaldar na cafonice, na caretice, na babaquice, nos loops de conservadorismo hipócrita e no fundamentalismo religioso bestial, reacionário, irritante, que misturava pus com cruz, um verdadeiro escárnio em pleno século 21.

Os escritores, os aficionados pela poesia, um ou dois visitantes lunáticos que moravam nas ruas do centro da cidade e que simplesmente iam entrando sem fazer a menor cerimônia em busca de comida, estavam todos assentados em círculo, sob uma frondosa jabuticabeira carregada de flores e de perfume, no quintal da casa velha tombada pelo patrimônio histórico e pelos cupins. O olhar dele e o olhar dela cruzavam-se em ângulos, hora agudos, hora obtusos, a se engatarem durante a tertúlia, feito um casal de vira-latas fornicando em logradouro público. Nesse fenômeno em particular, quem atirou as suas pedras neles, a fim de apartar os visgos, foi um doidinho franzino com cara de muçulmano suicida que danou a recitar a droga de um poema escalafobético, sem pé nem cabeça, escrito com versos fatiados, surrupiados, estripados das obras de outros autores. Todos ali já conheciam o patético modus operandi do maluquete. Justamente por isso, ninguém se enfezava com o espetáculo de plágios, com a prolixidade entediante do sujeito, com o tempo sendo despejado num ralo invisível, mas, a sua performance, que mais parecia um surto psicótico, foi a senha ideal para que todos se levantassem, um a um, a fim de esticar o corpo, de aliviar as bexigas, de tomar generosos cálices de cuspe licorado produzido com a saliva da terra, de trocar ideias, telefones, perdigotos, coadunando as ondas cerebrais para que vibrassem na mesma sintonia.

Sinfonia de verdade era quando os corpos daqueles dois poetas, em particular, cantavam pelo compassado atritar das suas peles. Reles amantes, amavam. Um amor sem rumo certo, no sentido literal da paixão. Literatos, liberados, sonhadores, altruístas, ainda não guardavam qualquer indício de misericórdia um pela alma do outro. Estavam vivendo o auge do romance, do autoconhecimento corporal, o princípio de tudo ou de nada para ver onde é que as coisas iam dar. E ela dava. E ele recebia aquelas dádivas de bom grado, comemorando o prazer de alcova a despejar formidáveis espetáculos de gêiseres candentes no dentro ou na superfície dela.

Mantinham-se esperançosos pelo nada programado, entregues à deriva por mares nunca dantes navegados, sem pressa alguma de atingir a frustração. Aquela plausível incerteza em nadar, nadar, nadar, sem saber se haveria alguma praia na qual morrer, na qual nascer, na qual ressuscitar ou na qual caminhar juntos, desta feita, noutro nível de esfera relacional. Na dúvida, desconhecendo se a liga seria promissora, mantinham os experimentos corporais, vivendo um dia de cada vez, senão soldados entre si pelo mais puro magnetismo, amalgamados pelo desejo cru, intenso, inadiável e comovente. Literal e literariamente, estavam adictos à inconteste substância da paixão.