Aos fins de semana, como num passe de mágica, como numa ópera de Giuseppe Verdi (1813-1901), a gente se sente mais leve, mais animado, os pássaros cantam mais alto (até no inverno), as crianças brincam até tarde (tarde até demais), as manchetes de tragédias nos jornais são relegadas à lúgubre segunda-feira, quando o ramerrão volta à carga. Como em “La Traviata”, ópera de Verdi de 1853, como no grande cabaré em que a existência humana se transforma às vezes, aproveitamos o fim de semana para praticar os prazeres que nos nega a vida nos dias de peleja. Quem é de sambar, se despacha logo para o primeiro morro, o primeiro barracão que encontra, se as condições sanitárias permitirem, claro; para os que são mais chegados a um programinha mais light, a primeira sugestão que aflora é um livro, um papo despretensioso com os amigos, uma partida de futebol… Há quem jure por todos os santos que seja tomado de verdadeiro júbilo com a sensação de realizar uma faxina daquelas, depois de ver a casa limpa, evidentemente. É claro que, justo aqui na Bula, não iríamos esquecer dos filmes, a melhor pedida do fim de semana, no esquenta antes da balada, ou para aqueles que já se decidiram (ou se conformaram) a ficar em casa. Na nossa lista de hoje, temos cinco pérolas, ou ainda mais, cinco diamantes para você ter no seu descanso experiências preciosas. Os títulos, todos na Netflix, aparecem do mais novo para o mais antigo, em ordem alfabética, sem nenhum outro critério.
Sozinhos, sem quaisquer vínculos familiares e com alguns problemas sociais, os vizinhos Andy e Mike foram feitos um para o outro. Eles não sabem ao certo o que é a felicidade, mas felicidade para eles é comer pizza congelada todos os dias, assistir a filmes antigos de kung-fu, tentar decifrar enigmas bestas e, claro, praticar paddleton, um jogo inventado pelos dois. A vida nada empolgante desses amigos segue seu curso monótono, mas perene, até que Mike é diagnosticado com câncer no estômago e sente que não vai viver muito mais. A fim de preservar sua qualidade de vida e o pouco que lhe resta de sanidade mental, Mike toma uma decisão: prefere morrer o mais breve possível, enquanto ainda tem saúde, por meio do suicídio assistido, legalizado em alguns estados americanos.
Em “Durante a Tormenta”, o diretor Oriol Paulo continua firme em seu propósito de submeter a narrativa às mais impensáveis reviravoltas, distorcendo a ordem natural do tempo numa história de ficção científica que se bifurca entre 1989, no dia da derrubada do Muro de Berlim, e 2014, 25 anos depois. Os dois caminhos se cruzam quando da precipitação de uma tempestade prolongada, cuja duração deve ser de três dias. A enfermeira Vera, seu marido David e a filha do casal, Gloria, se mudam para uma nova casa. Ao fazer uma faxina, Vera encontra fitas de vídeo antigas, registros feitos por Nico, um garoto que vivia ali com a mãe há muitos anos. A enfermeira faz uma busca na internet e descobre que Nico já morreu, atropelado. Por meio de uma televisão velha, Vera e Nico conseguem ver um ao outro. A fim de evitar sua morte, ela o adverte sobre seu destino, mas, ao acordar no dia seguinte, não reconhece mais sua vida: não é mais enfermeira, mas neurocirurgiã; David está casado com outra mulher, e ela não tem filhos. A viagem no tempo é, na verdade, apenas metafórica. O que Oriol pretende é deter ao máximo a atenção do espectador e, para isso, oferece uma cornucópia de eventos inusitados ao longo do roteiro. O público é levado a acreditar que foi transportado para uma outra realidade com a protagonista. Como está completamente deslocada, exilada numa vida que não é a sua, Vera precisa retomar sua verdadeira história. Todavia, só o irá conseguir se convencer as pessoas à sua volta sobre o que aconteceu. À medida que o enredo segue, se desdobram várias subtramas, mas a um ritmo de fácil digestão para a audiência, de forma que cada personagem seja absorvido ao máximo. Oriol Paulo propõe uma espécie de jogo com o espectador, torcendo a história conforme sua vontade nessa metáfora acerca das incertezas da vida. Com “Durante a Tormenta”, o diretor confirma sua obsessão em apontar os caprichos do passar das horas, expediente também usado em “Um Contratempo” (2016), e desenvolve uma questão interessante: o homem se submete ao tempo, mas raramente ganha alguma coisa em troca. O tempo dispõe do homem, e são poucos os que ganham sua confiança.
“A Sun” começa de maneira brusca e, assim, o espectador já fica esperto quanto ao que pode esperar do drama taiwanês do diretor Chung Mong-hong. Mas que ninguém se desestimule: o enredo é todo permeado por respiros cômicos — e eles são mesmo necessários. A pobreza, ainda que num país rico, é implacável, e ai daquele que pense que pode subverter o estabelecido. Contudo, seria tolo afirmar que o risco social é o responsável por fomentar a criminalidade; o fato é que a alma de todo homem tem sua face sombria — e cada um deve mantê-la sob controle. E controle — e, por extensão, autocontrole —, é uma ideia cara aos orientais. Um pai de família honrado não se prestaria a aturar os deslizes de caráter por parte de um filho, muito menos seus delitos. Ao tomar conhecimento da prisão de A-Ho, A-Wen exige que o caçula seja sentenciado com uma pena severa, o que revolta sua mulher, Qin, mãe do rapaz. A partir daí, o que se segue é a total desintegração do que até tão pouco tempo era um lar (e uma família). Ainda que haja uma ou outra tentativa pontual de contornar a questão, o casal, juntamente com o filho mais velho, pressentem que nada vai voltar ao ponto anterior à ruptura. A vergonha que todos sentem pelo destino de A-Ho, tornado ainda mais significativo numa sociedade que valoriza sobremaneira a austeridade da conduta social, o constrangimento, o remorso, tudo converge para que não consigam se encontrar outra vez. O sol pode até ser o que há de mais justo no mundo, mas só pode iluminar e emprestar seu calor a ambientes que se abram para ele. Do contrário, fica eternamente preso em meio à nuvem de ignomínia e pequenez que flutua sobre a natureza do homem desde sempre.
Lina, uma garota da Lituânia, sua família e seus vizinhos são capturados pelas tropas do Eixo na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A partir do avanço da União Soviética, de um lado, e de Hitler, pela outra frente, o país fica cercado, só sobrando aos lituanos a opção de se renderem. Os prisioneiros são mandados para campos de trabalhos forçados na Sibéria, os gulags, o que soa como verdadeira sentença de morte, dadas as condições inóspitas do lugar e o tratamento dispensado pelos comandantes aos cativos. Lina vai levando aquela vida da melhor forma que consegue, se valendo do talento para o desenho como passatempo, e é justamente essa sua aptidão que lhe vai garantir alguma vantagem sobre os outros, mote também de “O Fotógrafo de Mauthausen” (2018). Um dos generais gosta do que Lina apresenta e lhe pede que faça um retrato seu. A narrativa dá um salto o seu tanto exagerado, deixando de explorar melhor o episódio e responder algumas perguntas que o espectador decerto se faz em silêncio, como acerca do porquê de tamanha amabilidade, e tão repentina. A performance de Bel Powley igualmente vacila um pouco, mas o vigor do enredo se mantém. “Retratos de uma Guerra” parte de uma premissa correta, conta com sequências bem dirigidas e lança luz sobre um assunto já amplamente escrutinado pelo cinema, mas sob um olhar revigorado. Merece a consideração do público.
Filmes de mães que abandonam o lar e relegam os filhos à própria sorte nunca são levados às telas impunemente. Depois de um distanciamento de mais de 30 anos, Anabel volta a ficar de frente com Chiara, a filha que abandonou. Chiara teria todos os motivos do mundo para não querer mais encontrar a mãe; no entanto, por sentir que a relação ainda pode ser reparada, sai à sua procura. Sua ânsia por fazer o tempo voltar, como num estalar de dedos, e ter pela mãe o afeto que a própria Anabel dispensara é tanto que lhe faz uma proposta inusitada: quer que viajem juntas e passem dez dias num lugarejo perdido entre a Espanha e a França. Este é um drama sobre dores, mágoas, murmúrios, emoções. A leviandade de Anabel, sua ausência na vida de Chiara, a solidão que a filha fora obrigada a vivenciar desde tenra idade por sua culpa, todas essas parecem questões menores se tomadas à luz do sentimento que se apossa das duas. A fotografia é um achado em meio a um filme o seu tanto longo em demasia, com silêncios profundos (e imprescindíveis) que se sucedem à medida que os diálogos, estudadamente pausados, vem à tona, desferindo golpe acima de golpe sobre o espectador, mas com doçura. A Chiara de Bárbara Lennie é mais um dos bons predicados dessa história, que se não termina bem, termina boa. Às vezes, nem as mães são felizes.
Filmes de mães que abandonam o lar e relegam os filhos à própria sorte nunca são levados às telas impunemente. Depois de um distanciamento de mais de 30 anos, Anabel volta a ficar de frente com Chiara, a filha que abandonou. Chiara teria todos os motivos do mundo para não querer mais encontrar a mãe; no entanto, por sentir que a relação ainda pode ser reparada, sai à sua procura. Sua ânsia por fazer o tempo voltar, como num estalar de dedos, e ter pela mãe o afeto que a própria Anabel dispensara é tanto que lhe faz uma proposta inusitada: quer que viajem juntas e passem dez dias num lugarejo perdido entre a Espanha e a França. Este é um drama sobre dores, mágoas, murmúrios, emoções. A leviandade de Anabel, sua ausência na vida de Chiara, a solidão que a filha fora obrigada a vivenciar desde tenra idade por sua culpa, todas essas parecem questões menores se tomadas à luz do sentimento que se apossa das duas. A fotografia é um achado em meio a um filme o seu tanto longo em demasia, com silêncios profundos (e imprescindíveis) que se sucedem à medida que os diálogos, estudadamente pausados, vem à tona, desferindo golpe acima de golpe sobre o espectador, mas com doçura. A Chiara de Bárbara Lennie é mais um dos bons predicados dessa história, que se não termina bem, termina boa. Às vezes, nem as mães são felizes.
Crianças são, geralmente, seres adoráveis, tanto que, levados pela ingenuidade, pela visão edulcorada do mundo, da vida, não conseguem apreender o que a sociedade espera delas e dos adultos que podem vir a se tornar num futuro que chega a galope. É muito fácil para uma criança perder-se nos castelos de fantasia que somente ela acessa, principalmente se não orientadas por pais atentos e sensíveis. O protagonista de “Como Estrelas na Terra”, Ishaan, é um menino como outro qualquer, com talentos e dificuldades de um menino como qualquer outro. Passando por um momento particularmente ruim na escola, não consegue se concentrar nas lições, a ponto de sequer memorizar as letras do alfabeto. Seus professores não o toleram mais, os demais estudantes só o veem como mote para a próxima humilhação e o pai, aturdido, só encontra uma saída: despachá-lo para outro colégio, em regime de internato. O menino logo mergulha numa letargia que vai lhe tolhendo todas as vontades — e é assombrosa a interpretação de Darsheel Safary. No estranho lar que lhe arrumaram, surge para ele Nikumbh. O professor substituto de artes percebe o que está acontecendo e toma o partido do garoto, que corresponde e, de quebra, ganha uma nova vida. “Como Estrelas na Terra” é um filme repleto de nuances, de tons, que juntos compõem a história profunda que transcende o simples — e fustigado — plot do mestre que faz do amor por seus alunos, os mais problemáticos, em especial, sua razão de viver. É muito mais: é um filme denso, sem deixar de ser comovente, sobre uma questão mais comum — e mais grave — do que se pensa; é uma história que fala do quão uma pessoa que se importa verdadeiramente com alguém tão próximo faz a diferença, na vida daquele próximo e de todo o restante da humanidade. Do mesmo modo que numa constelação, aqui embaixo todo mundo também deve brilhar.