Filme com Brad Pitt na Netflix é uma visita guiada ao inferno por 134 minutos Divulgação / Sony Pictures

Filme com Brad Pitt na Netflix é uma visita guiada ao inferno por 134 minutos

Uma vez que um país se declara oficialmente contrário à postura de outra nação — soberana, a despeito das muitas críticas que se possam fazer sobre a visão de mundo de seus líderes —, um abismo de incerteza abre-se diante de povos de todo o planeta e torna-se ainda menor a já curta distância entre a civilização e a barbárie. Declarar guerra contra quem quer que seja nunca é uma resolução que se toma com toda a segurança, sem quaisquer implicações éticas ou grandes questionamentos sob a perspectiva humanitária, mas é, em muitas circunstâncias, a única coisa a se fazer no intuito de se fugir da irrelevância histórica e da desonra, que, conforme ensina Winston Churchill (1874-1965), primeiro-ministro do Reino Unido quando da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), se encarniça de um povo que não assume as grandes causas pelas quais se deve combater. Por mais perverso que soe, temos que concordar sobre um ponto: a guerra fascina, e esse é o problema. Quase sempre, foi por meio dos enfrentamentos entre forças inimigas que a humanidade viu nascer seus heróis mais destacados, homens e mulheres invulgares que se vestiram da aura de personalidade da história graças a um desempenho de coragem memorável ao longo de uma série infinda de batalhas.

Ao longo de sua bem-sucedida carreira, David Ayer foi se firmando como um especialista nessas histórias sobre a desavença fundamental entre os homens, que perdura insensível ao passar do tempo que nunca cansa, ao inegável progresso da vida pós-moderna, às investidas da ciência atacando moléstias que nos dizimavam até não muito tempo atrás. Tomando uma premissa fantasiosa acerca do enfrentamento das tropas americanas ao nazismo, uma das maiores ignomínias já criadas pelo gênero humano desde o big bang, “Corações de Ferro” (2014) acerta o alvo ao escolher privilegiar uma abordagem dermatológica da Segunda Guerra, malgrado também se detenha sobre questões viscerais do conflito, levada por um elenco azeitado, que entende a história em todos os seus muitos detalhes. E à frente dele, um nome volta a se destacar nesse subgênero de filmes sobre aqueles seis anos de horror.

O desempenho fora da curva de Brad Pitt em “Bastardos Inglórios” (2009) foi preponderante para Ayer o escolhesse, como Quentin Tarantino, para protagonizar seu filme. Até seria possível dizer que o longa de 2014 se prestaria a uma homenagem a um dos grandes personagens da vasta galeria de tipos criados por Tarantino, não fosse por uma obstinação do diretor de “Corações de Ferro” em sacudir a poeira e passar o bastão, dando a oportunidade para que outro rei assuma o trono. Pitt continua afiado, como quando encarnava o tenente Aldo Raine, mas aqui se assemelha mais a um mestre de cerimônia, deixando o caminho aberto para os personagens mais jovens. Já pelo nome se tem uma ideia do que vem a ser o veterano a que dá vida no roteiro de Ayer. Seu Don Collier, também conhecido como Wardaddy, algo como “papai guerreiro” (ou “cafetão de cadeia”, numa gíria mais suja), está sempre a postos, disponível para cumprir as ordens do Alto-comando, ao passo que não descuida de seus pupilos, atento às suas demandas e, para honrar o apelido, dedicado a encontrar um espaço, por mínimo que seja, para alguma diversão.

O diretor situa a narrativa já depois do Dia D, o lendário desembarque das tropas aliadas na Normandia, no noroeste da França, em 6 de junho de 1944. Eram os estertores da guerra, portanto, mas restavam ainda territórios a dominar e adversários a abater. Wardaddy e seus homens estão juntos desde o norte da África e, salvo um ou outro atrito, não parecem cansados ao invadir o solo da Alemanha. Todos têm um nome, mas se apresentam por pseudônimos muito mais expressivos. A Boyd Swan, ou Bíblia, o artilheiro anglicano de Shia LaBeouf; Trini García, o Gordo, motorista de Fury, o blindado que conduz a pequena divisão e lhe serve de abrigo; e Grady Travis, o ambíguo Coon-Ass, mecânico responsável pelos constantes reparos no tanque, junta-se Norman Ellison, não por acaso o único chamado sempre pelo nome de registro. Ellison, performance precisa e segura de Logan Lerman, dá a seu personagem a cota exata de hesitação de um datilógrafo, laureado por ser capaz de bater sessenta palavras por minuto, colocado na frente da batalha como que por engano. Episódios paralelos ao horror do confronto bélico — também hediondos, mas com boa margem para a poesia —, como o que se dá quando os homens encontram Emma e Irma, as irmãs germânicas de Alicia von Rittberg e Anamaria Marinca, ilhadas e mortalmente deprimidas depois que Hitler sentira cheiro de carne queimada e ordenou o recuo, são um bom respiro dramático em meio a sequências de combate impressionantemente realistas. E preparam o espectador para a conclusão, nem tão surpreendente assim. Norman Ellison se prova um bom lugar-tenente de Aldo Raine, uma vez que Wardaddy não volta. Rei morto, rei posto.


Filme: Corações de Ferro
Direção: David Ayer
Ano: 2014
Gêneros: Guerra/Drama/Ação
Nota: 9/10