Filme com Gal Gadot na Netflix te manterá imóvel na ponta do sofá e roendo as unhas Bob Mahoney / Open Road Films

Filme com Gal Gadot na Netflix te manterá imóvel na ponta do sofá e roendo as unhas

Não há tarefa mais árdua que tentar compreender as dores fundamentais de uma pessoa. Sendo cada criatura sob o sol um indivíduo pleno de seus próprios conceitos, de suas opiniões intransferíveis acerca de todos os assuntos, sofrendo as dores cuja força só ele mesmo pode conhecer, o único responsável por suas escolhas, pelo caminho que decide trilhar — que por tortuoso que seja, pode conduzir a algum lugar de proveito —, por seus tropeços e suas glórias, o gênero humano tem de recorrer a alguns mecanismos que o possam auxiliar na travessia longa e penosa da vida, mais excruciante para uns do que para outros, mas sempre muito delicada. A alma do homem tem no pensamento filosófico um meio a fim de que se harmonize, absorva os sinais de tudo quanto precisa ser transformado e daquilo que tem de perdurar, remanescendo a ideia de que tudo aqui neste plano converge para um mesmo objetivo. Muito menos poético, o corpo reivindica medidas de alcance imediato como resposta a circunstâncias provocativas, desafiadoras, de efeito prático inquestionável e muitas vezes definitivo. Desde o princípio dos tempos, seres humanos somos vulneráveis a toda sorte de intempérie, exatamente porque inclinados desde o berço à balbúrdia, à subversão, ao tumulto. Nessas ocasiões, a filosofia, sabendo poder muito pouco, cede lugar à polícia, aparelho do Estado de importância fulcral para que se mantenha a paz no seio da sociedade. A polícia existe para reprimir a tendência ao caos inerente à natureza do homem. Mas quando o risco de que ela pode renunciar ao seu papel inescapável de impor limite ao cidadão comum e tornar-se parte de uma estrutura corrompida, abjeta, que caminha a passos largos para a decomposição irreversível, deixa de ser uma hipótese execrável e distante e se apodera do cotidiano, ninguém sai ileso.

Essa é uma das mensagens em “Triple 9” (2016), thriller em que o diretor John Hillcoat saca o argumento já bem conhecido da corrupção policial e o aplica sem qualquer complacência de modo a deixar claro que a ninguém é garantido o direito de se arvorar como dono da verdade e que a vida é uma eterna superposição de mocinhos e vilões, sendo estes muito mais numerosos que aqueles. O filme de Hillcoat tem o condão de reproduzir uma pletora de clichês ao passo que também consegue apresentar lances de mais originalidade, ainda que todos eles permaneçam à margem do roteiro de Matt Cook. É visível o empenho do diretor quanto a fazer o melhor uso da pluralidade do elenco; contudo, também se percebe que a história deriva em mais de um momento, como se esperasse com urgência pela virada que não chega nunca. A abertura, quando um assalto a banco é mostrado em sua riqueza de detalhes, decerto é um excelente cartão de visita, mas já tira muito do possível encanto do texto de Cook, que teria chance de ser muito mais bem deslindado ao longo de 115 minutos. A atmosfera de desordem, de falta de harmonia, de total ausência de método são propositais, realçadas pela fotografia de Nicolas Karakatsanis, rica das névoas e de tons sombrios que Hillcoat enquadra bem; o problema é a instabilidade do ritmo, que se perde já no fim desse primeiro ato, promissor.

Depois de esclarecidas algumas questões sobre o real motivo da empreitada, levada a termo por Michael Atwood, o ex-chefe de operações especiais da polícia de Atlanta vivido por Chiwetel Ejiofor, e seus comparsas, os policiais Marcus Belmont, interpretado por Anthony Mackie; e Jorge Rodriguez, personagem de Clifton Collins Jr., além dos criminosos profissionais Russel Welch, de Norman Reedus, e seu irmão Gabe, de Aaron Paul, entra em cena quem de fato consegue merecer o status de vilã da trama. Irina Vlaslov — de uma quase irreconhecível Kate Winslet, envelhecida pelo excesso de maquiagem, roupas extravagantes, muitas joias e uma juba loura à prova de vendavais —, assunta à chefia da máfia russa depois da prisão do marido, os havia enviado para uma missão específica, e como eles fracassaram, passam a ter de se sujeitar a suas novas ordens. Para que não surjam novas margens de erro, a gangue recorre ao triplo nove do título, ou seja, irão matar um policial no intuito de despistar a ação das autoridades.

A subtrama que mais capta o interesse do público é decerto a que se refere a Elena, a personagem de Gal Gadot, que como sua irmã Irina, não chega a ocupar o centro da ação. Talvez o que mais seduza mesmo em “Triple 9” seja constatar o progresso de atores talentosos, mas que ainda precisavam se encontrar. Gal Gadot é o exemplo mais simbólico disso.


Filme: Triple 9
Direção: John Hillcoat
Ano: 2016
Gêneros: Thriller/Drama/Crime
Nota: 7/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.