Sempre se registrou num filme passagens lendárias da trajetória particular de um indivíduo, célebre antes ou depois de exibida a trama — sim, porque, uma vez divulgado um filme, a vida daquela pessoa nunca mais voltará ao ponto de partida —, mas de menos de uma década até aqui, parece que houve uma atenção maior dos diretores para as biografias. Não que ideias vindas direto da cabeça saborosamente delirante de certos roteiristas tenham caído em desgraça; o caso é que há histórias tão bárbaras — e a palavra não poderia ser mais adequada em sua vasta semântica —, tão absurdas, tão fascinantes e, por paradoxal que pareça, tão inverossímeis que só mesmo o cinema para dar conta delas. A arte existe porque a vida não basta. A arte é maior que a vida. A Bula foi atrás de algumas dessas histórias maravilhosas e trouxe dez delas para você. São legítimas obras-primas quando o assunto é reproduzir na tela grande todo o impacto que um enredo bem desenvolvido, conduzido por um diretor atilado e diligente, provoca nas plateias do mundo inteiro. Os filmes foram arrolados de acordo com a data de lançamento, do mais recente para o divulgado há mais tempo, e não existem normas de classificação, só a da sua preferência. Escolha o que mais se assemelhe à sua própria vida ou, ao contrário, fique com aquele cuja história você imagina que nunca vai lhe acontecer. A vida de todo mundo dá um filme.
“Mank” é a história dentro da História, assim, com “h” maiúsculo. Os bastidores de “Cidadão Kane”, talvez o filme mais importante já feito, a estreia de Orson Welles, o garoto-prodígio do cinema dos anos 1940, são esmiuçados na trama da Netflix dirigida por David Fincher. Aos 25 anos, Welles decide que ser eternamente conhecido e reverenciado como o sujeito que revolucionou o rádio e o teatro eram menos do que merecia. Assim, toma Hollywood de assalto, escoltado pelo roteirista Herman J. Mankiewicz, cuja visão de mundo assumidamente de esquerda faz com que rapidamente se torne persona non grata no meio artístico ao longo dos anos do perigo comunista e da patrulha de pensamento, estimulada e patrocinada pelo macarthismo. Não demora e Welles e Mankiewicz se tornam inimigos figadais e concorrentes, sempre disputando a preferência dos estúdios e mesmo a autoria dos filmes, como aconteceu com “Cidadão Kane”. À luz da História, pelo menos a História oficial, Welles — e não Mank — é o pai da criança, o que desencadeou uma espiral de autodestruição na vida do preterido.
Consciência de classe. Consciência política. Consciência humanística. Todas essas noções perpassam o drama de Aaron Sorkin. No longínquo 1968, uma manifestação pacífica contra a Guerra do Vietnã degringolava em pancadaria. A polícia reprime o protesto com violência desproporcional. No ano seguinte, o FBI indicia sete militantes políticos por conspiração. O julgamento leva mais de cinco meses, entre ameaças a testemunhas, ofensas ao juiz e espancamento de réus nas dependências do próprio tribunal. As vidas deles nunca mais retomam o ponto de origem, mas… será que era mesmo boa a vida que eles levavam antes? Deveriam ter voltado atrás em suas posições? Ou todo o caos valeu a pena? Vale a pena ter a vida revirada por causa da tal consciência? Essas são algumas das perguntas que “Os 7 de Chicago” nos suscita, tão sutilmente quanto um martelo nas mãos de um ferreiro.
Tirada do livro “I Heard You Paint Houses” (2003), de Charles Brandt, investigador profissional que se debruçou sobre o crime organizado nos Estados Unidos, a história de “O Irlandês” desvenda o envolvimento de Frank Sheeran, um dos maiores mafiosos americanos entre os anos 1960 e 1970, no sumiço do líder sindical Jimmy Hoffa. O filme esmiúça a vida de crimes de Sheeran desde o começo, quando ele conhece Russel Bufalino, um dos gângsteres mais poderosos da Pensilvânia à época e se torna um pintor de casas, alusão ao sangue das pessoas que extermina ao respingar nas paredes, expressão que Brandt tomou por base ao batizar o livro. Conforme a trama se desenrola, o espectador acompanha a escalada do irlandês junto à quadrilha, sempre fiel a Bufalino, seu padrinho na vasta carreira de delinquências. Foi honrando a confiança que o chefão depositara nele que Sheeran pôde chegar tão longe, e em nome desse código de honra muito particular, comete as maiores baixezas, como matar Hoffa, outro homem-forte do submundo que também o tomara por protegido. Sheeran não resiste a uma ofensiva mais severa do FBI e cai, levando os peixes grandes todos consigo. Amarga alguns anos de cadeia e termina num asilo, onde o filme principia e acaba, recurso muito bem usado por Martin Scorsese, um mestre também em se valer da estratégia de comprimir e alongar o tempo a seu gosto, a fim de imprimir mais realismo aos enredos que defende. “O Irlandês” talvez seja a obra-máxima de Scorsese — até que venha a próxima.
“O Banqueiro da Resistência” poderia ser só mais um filme sobre os horrores acerca da Segunda Guerra Mundial. No entanto, a história não se rende ao clichê e vai muito além, abordando as razões em nome das quais um homem comum, ainda que muito rico, renuncia à estabilidade da boa vida que tem, com um lar acolhedor, uma família que o respeita e, claro, dinheiro, visando ao bem coletivo. O diretor holandês Joram Lürsen foi extremamente original ao escolher encampar na telona a vida de Wally Van Hall, um banqueiro que cria junto com o irmão mais velho, Gijs, um fundo no intuito de prover as necessidades da população enquanto durar o domínio nazista na Holanda. Embora diante de uma questão complexa, que se desmembra em outras tantas, Lürsen mostra pulso ao deixar clara ao espectador sua reverência e mesmo sua gratidão a Van Hall. De um modo límpido, transparente, honesto, mas sem nunca derrapar na pieguice ou num possível tom professoral.
O enredo desse drama sobre a Segunda Guerra Mundial — com tudo o que um filme sobre a resistência judia frente à dominação alemã tem de mais lancinante — gira ao redor de Francesc Boix, ex-soldado que servira durante a Guerra Civil Espanhola, e fora feito prisioneiro em Mauthausen, um dos campos de concentração nazistas quando do advento de mais uma série de batalhas, dessa vez em escala global. A fim de ter alguma ocupação e escapar da loucura e da morte iminentes, ele se oferece para atuar como fotógrafo do diretor do campo, o oficial Paul Ricken, registrando o desempenho das tropas de Hitler. Testemunha involuntária da história, Boix fica sabendo que a Alemanha não será páreo à contraofensiva dos Aliados, o que suscita nele a obsessão em manter a salvo tudo o que pôde documentar por meio de suas fotos, a fim de não permitir que os líderes nazistas tivessem qualquer tipo de benefício num futuro julgamento.
Stefano Cucchi, um italiano de 31 anos, é detido depois de uma blitz da polícia. Os policiais encontram com Cucchi uma pequena porção de drogas, cerca de 20g de maconha e 2g de cocaína. Ele é encaminhado à delegacia sob a acusação de posse de entorpecentes. Cucchi é barbaramente surrado pelos policiais que o prenderam e permanece aguardando o julgamento na cadeia. Ele acaba condenado e, depois de algum tempo, passa a sentir fortes dores, decorrentes da violência que sofrera. Mesmo assim, Cucchi resolve não denunciar os policiais, temendo possíveis represálias. O espectador acompanha a agonia do protagonista padecendo de todo esse tormento junto com ele, ao seu lado, ansiando que sua sorte milagrosamente vire em um momento qualquer da trama, o que não se dá: um dia, Stefano Cucchi aparece morto em sua cela, sem que ninguém saiba explicar o que terá acontecido com ele. “Na Própria Pele” é uma crônica do despreparo da polícia, seja na Europa, seja no Brasil — ainda que aqui haja nuanças muito nossas no que concerne ao tema —, com o mérito de ainda abrir a discussão em torno dos assuntos de sempre, que continuam inexplicavelmente sendo varridos para debaixo de um vasto tapete. Em pleno século 21.
“22 de Julho” é um filme nada afeto a sutilezas. E isso é um trunfo do diretor Paul Greengrass ao reportar o mais sangrento ataque terrorista já experimentado pela Noruega. Em 2011, Anders Breivik assassinou covardemente 77 pessoas, crianças e jovens na maior parte. O fato de Greengrass entrar de sola no objeto de seu trabalho, o terrorismo — e, sobretudo, o terrorismo de brancos contra não-brancos num país reverenciado pela natureza civilizada e tolerante de seu povo —, é uma lufada de ar fresco no embolorado tema da violência étnica na Europa, ainda que, em sua loucura homicida, Breivik bradasse que executava aquelas pessoas por serem marxistas, filhas da elite ou sabe Deus que outro impropério, e o que, afinal, estaria querendo dizer com aquele horripilante teatro do absurdo. Greengrass acerta, sim, ao cutucar essa ferida com mão pesada, como ao filmar a chegada de Breivik à ilhota onde acampavam suas vítimas, reunidas para um congresso. A história é levada num ritmo cortante de tamanho realismo, sem se deixar enredar pela facilidade da narrativa sensacionalista. O ataque do lunático é composto de cenas que se atiram na tela como um gancho de direita na cara do público, quando poderiam ser apenas uma bofetada. É essa honestidade que faz de alguém um artista invulgar e, de quebra, um humanista incorrigível