De tirar o fôlego e baseado em uma história real, novo filme da Netflix vai mexer com sua cabeça Divulgação / Netflix

De tirar o fôlego e baseado em uma história real, novo filme da Netflix vai mexer com sua cabeça

Abdicar de sonhos em nome de uma causa que pode ser maior que a própria vida talvez não seja uma atitude tão extrema assim. Diga-se o que se quiser dizer, mas a grande aspiração do homem é e sempre será o amor. Perceber-se tomado por um sentimento avassalador, que conforta ao mesmo tempo em que angustia, que desorienta enquanto joga luz sobre um lado nosso até então nebuloso, diáfano, temido, é das melhores experiências com que nos regala a grande aventura que é viver, e à medida que nos familiarizamos com essa nova sublime condição e que temos a certeza — a certeza possível — de que se a verdade alicerça todo o processo, passamos a reconhecer que o outro também merece desfrutar de tal prazer. Contudo, amor que se imagina passível de tantas racionalizações pode ser qualquer coisa, menos amor; uma vez que alguém se dá conta de que ama, pouco importa se é correspondido em igual proporção ou se se transforma no mais pascácio dos mortais e aceita a triste verdade da ilusão do amor. Só o que interessa mesmo é se deixar absorver por uma das evidências mais inequívocas de que o custoso estar no mundo não tem sido um caso perdido, uma luta em vão. Que a vida pode ser o oásis de acolhimento e deleite que quase todos merecemos.

Embora o amor possa ser toda essa maravilha, envolver-se intimamente com outra pessoa termina pôr à mostra ângulos pouco auspiciosos — e mesmo terríveis — de alguém. David M. Rosenthal lança mão de um argumento singular para expor suas considerações acerca da mais humana das emoções. “Paixão Sufocante” (2022) se presta a espelhar sem falsas condescendências os vícios de uma relação, que como a maioria principia bem, e como boa parte delas degringola por uma razão nada desprezível. É esse o ponto sobre o qual o diretor quer se debruçar, mediante protagonistas cujo amor, nascido de maneira precipitada, como um arroubo, deixam-se levar pela mera sugestão desse sentimento, muito longe do que deveria ser — e efetivamente é — amar outra pessoa. Com ligeiras variações de intensidade, Rosenthal chega às sequências com que faz o espectador se reconhecer subitamente confuso, além daquelas que, sem trocadilho, tiram o fôlego, mérito da fotografia impecável de Thomas Hardmeier.

Baseado na história real de Audrey Mestre (1974-2022), o roteiro do próprio diretor dá vida a Roxana Aubry, a estudante de biologia marinha interpretada por Camille Rowe. Contaminada por aquela variedade de tédio que acomete mocinhas bonitas, endinheiradas e um tanto perdidas também, Roxana, desempenho marcante de Rowe pela capacidade de captar as pequenas nuanças da personagem, permite-se um retiro sabático na Riviera Francesa. É lá que conhece o mergulhador Pascal Gautier, de Sofiane Zermani, por quem fica atraída de imediato, como o pardal diante da serpente. Claro que Rosenthal leva sua narrativa de modo a exaltar a vida como a arte do encontro, conforme falara dela o poetinha Vinicius de Moraes (1913-1980) — grande especialista na matéria e, por óbvio, nas coisas do coração —, mas à medida que a história toma corpo, são mesmo os desencontros da vida, neste ou naquele grau, que decretam os rumos do que vai acontecer de realmente importante para os dois, sobretudo para Roxana.

A forma como a mudança da personagem de Rowe é apresentada mesmeriza pela naturalidade. A tal paixão sufocante que dá título ao longa vem, como deve ser: Roxana não resiste aos encantos de Pascal, arquétipo da vida que, no fundo, sempre desejou. O problema, e é esse o pulo do gato no argumento de Rosenthal, é que o novo namorado passa a ser inspiração tão forte para ela a ponto de fazê-la aspirar a ser não só como ele, mas ainda melhor. Conforme o desenlace da trama se aproxima, o diretor-roteirista recrudesce a carga dramática que municia o público de evidências sobre a psicopatia do tipo encarnado por Zermani, muito centrada em sua desenvoltura com o belo sexo. Conquistador nato e incontrolável, a figura de Pascal tem a força de um Édipo da tragédia de Sófocles (496-406 a.C.), um homem cujos poderes não o tornam imune às trapaças do destino e que enlouquece e destrói todos quantos ama.

Audrey Mestre morreu em 12 de outubro de 2002, na República Dominicana, tentando superar o recorde mundial de mergulho, de 171 metros. E apaixonada pelo homem que lhe ensinara a vencer o medo e desbravar as profundezas do oceano.


Filme: Paixão Sufocante
Direção: David M. Rosenthal
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.