Faz algum tempo que o homem abandonou sua condição de quadrúpede para assumir a forma como apresenta-se hoje, guardadas as devidas proporções, mas ainda habita a selva, uma selva chamada capitalismo, como todo ambiente hostil que se preze, também cheio de leis. Entre essas muitas leis, expressas ou tácitas, incluem-se a economia de mercado e a da livre concorrência, defendidas com brilho por um homem invulgar. O filósofo e economista escocês Adam Smith (1723-1790), homem dos Setecentos, o feérico Século das Luzes — época de revoluções lapidares nas artes, na ciência e, por óbvio, na economia —, provou-se um visionário, alguém que enxergava o mundo e o compreendia muito além do que seu próprio tempo poderia supor. A humanidade conheceu logo do que era capaz o gênio de Smith, responsável por elaborar uma das teorias mais completas acerca do liberalismo econômico, doutrina que, por sua vez, serviu de base para a fundamentação do capitalismo moderno. Avesso a maiores interferências do Estado na condução da economia, o liberalismo prega também que os indivíduos — e, por extensão, os consumidores — são livres para escolher que empresas desejam solicitar, e o consumidor opta, evidentemente e sem nenhuma crise de consciência, por aquelas que lhe proporcionam um produto ou atividade laboral mais bem-acabada. Na ânsia por prestar melhores serviços, as empresas se autorregulam e se aprimoram, uma espécie de darwinismo vertido para o contexto mercantil. A disputa de mercado é imprescindível a fim de que se preservem as próprias corporações, tenham a dimensão que tiverem. No caso das grandes — e, em especial, das muito grandes —, a discussão tem a natureza de uma verdadeira guerra de titãs, com cabeças rolando para todos os lados.
“Late Night” (2019) insinua o tema colateralmente, mas de maneira pungente. Trabalhando na indústria do entretenimento há cerca de duas décadas como produtora, roteirista e diretora, concomitantemente, Nisha Ganatra sabe muito bem do que se propõe a falar. A indo-canadense-americana viu de muito perto o fenômeno do achatamento das empresas de comunicação mais tradicionais, que precisaram encontrar com urgência um jeito de resistir à onipresença pusilânime das redes sociais, das plataformas alternativas de download e upload de vídeos e, o principal, das gigantes do streaming. O desinteresse crescente do público por assistir tevê — pelo menos da forma como vinha fazendo nos últimos cinquenta anos — acendeu a luz amarela para muita gente. Com Ganatra não foi diferente. A diretora acusou o golpe e sentiu a necessidade de posicionar-se sobre o assunto, de maneira firme, mas ao mesmo tempo suave, lúdica, fazendo excelente uso de clichês que nunca arrefecem, estimulados pela falsa modernidade de tempos estranhos, ainda inexplicavelmente hostis a mulheres, indivíduos não-brancos, imigrantes, cuja entrada no mercado de trabalho nos Estados Unidos soa como uma quimera. Reunindo tais condições, como ela, alguns desses cidadãos se recusam a admitir que a vida siga seu “curso natural” e atropelam sem cerimônia os planos atrozes do destino.
O problema da britânica Katherine Newbury é de outra ordem. A protagonista de “Late Night”, composição de gênio de Emma Thompson, é uma comediante veterana às voltas com um certo desajuste com seu próprio tempo, muito por sua culpa, que se diga. O roteiro de Mindy Kaling, a coestrela do filme, é cirúrgico ao apontar tanto as qualidades como os defeitos de sua personagem central — principalmente os defeitos —, dona de um temperamento doce no fundo, refém de sua intransigência. Vivendo da glória modesta do que talvez nunca tenha sido, Katherine não consegue mais emplacar o talk show que apresenta há dez anos, e isso não é propriamente um erro: sua especialidade são as piadas que exaltam o típico humor inglês — sutil, refinado, quase etéreo —, além da preferência por convidados que tenham o que dizer, como a historiadora e comentarista política Doris Kearns Goodwin, celebrizada por biografar vultos americanos modernos do quilate de Abraham Lincoln (1809-1865) e John Kennedy (1917-1963). É possível que o problema esteja a alguns metros do estúdio de onde se lança para milhões de lares da América, na sala de roteiristas, todos homens, brancos, endinheirados e a maioria heterossexuais. Eles definitivamente precisam de um choque de realidade. É nesse ponto que entra a personagem de Kaling.
Katherine havia incumbido Brad, o único da legião de subordinados que parece satisfazê-la, a contratar uma mulher para a equipe. O faz-tudo interpretado por Denis O’Hare chega ao nome de Molly Patel, aspirante a estrela da comédia stand-up que trocou a acolhedora Pensilvânia, onde tinha um emprego estável na indústria química pela frieza dos arranha-céus de Nova York em busca de seus sonhos. Mal sabia ela que a vida com que sempre fantasiara não seria bem um mar de rosas: a nova chefe, seu ídolo desde tenra idade, revela-se um monstro abusivo capaz de devorá-la de um só golpe, o que não hesita em fazer com o colega que se atrasa para uma reunião marcada por ela — que passou anos sem nunca se preocupar em conhecer seus redatores — porque precisou consolar a namorada, carente depois de ter ido morar em outro estado.
Depois de outras sequências como essa, em que a personalidade tóxica de Katherine fica patente, Ganatra propõe reviravoltas pontuais, dosadas, a exemplo da que deixa a nu um episódio delicado de sua intimidade envolvendo Charlie Fain, o roteirista vivido por Hugh Dancy, que por pouco não arruina seu casamento com Walter, de um John Lithgow em momento sóbrio e comovente. Daí até a conclusão, a narrativa repisa o argumento da premência por renovação da personagem de Thompson, que tem em Kaling uma escada à altura.
Filme: Late Night
Direção: Nisha Ganatra
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 9/10