Do que é mesmo que os cães estão rindo

Do que é mesmo que os cães estão rindo

João mora numa cabana de bacanas em frente ao mar de Cocanha. Sua mais recente proeza foi aprender a se sentar nos degraus da escadinha que liga a varanda ao jardim. Assisti ao vídeo que fizeram dele e me senti um bocado inspirado para voltar a escrever. Sentado no degrau mais alto da escada, João parece contente. Do que será mesmo que os cães estão rindo? Dos homens? Da vida? Das mazelas da vida criadas pelos próprios homens?

João é um canídeo ordinário, sem raça, sem pulgas e sem boletos. É vê-lo sentado daquele jeito e enxergar graça do bichinho. Tenho uma certa queda por cães desclassificados com ar patético. Nota-se que o vira-latas abana o rabo de um lado para o outro, como se fora um espanador a varrer o assoalho da varanda. Ao abanar o rabo, os cães encontram uma forma explícita e direta de demonstrar gratidão, apreço, felicidade e compaixão.

Suponho que se alegrar não seja uma tarefa assim tão difícil para um cão quanto é para um ser humano. Ainda mais, para um animal como aquele, criado no bem bom, dentro de uma casa de praia, no seio de uma família de classe média composta por pessoas gentis, pacíficas e amorosas que o tratam como se fosse alguém da família. E não é que ele seja mesmo?

João estica o pescoço para a frente, na direção do mar. Por alguns instantes fecha os olhos. Fareja segredos no ar. Medita n’algo misterioso, seja raso, seja profundo. Sente a brisa salgada do mundo a lhe crispar o focinho. Parece um vira-latas com cara de viagem. Ao fundo da cena, há uma orquestra monumental de pássaros a fazer um particular show de cantoria. Difícil de se viver a vida sem música de passarinho, sem o consolo de um animal de estimação.

Em meio a tanta calma, não adivinho, nem estimo, se o João possui alma, se cogita ter filhos ou reencarnar numa bisteca ou capturar com os dentes uma ave distraída, desconecta. Até onde eu sei, na minha santa ignorância, os cães não costumam implicar com a companhia das aves, a ponto de desejar comê-las. Exceção registre-se às galinhas. Em geral, a cachorrada adora perseguir os galináceos pelos terreiros para se exercitar, para se divertir, para tocar o terror ou para fazer uma boquinha mesma. A natureza animal é bela, mas, sofre também de determinadas brutezas.

João mantém-se ereto, numa postura impoluta, elegante, autodeterminado, simulando a classe de um gato. Ele não tem nada contra os felinos. Apenas não suporta a presença deles e eu compreendo muito bem o que seja isso. Na sua opinião, viravam todos carne de espetinho e couro para fabricar tamborim. Os gatos são interesseiros, dissimulados, maliciosos e amam espreitar a passarinhada repletos de terceiras intenções. Nesses quesitos, até parecem humanos.

João permanece numa postura indecifrável, sentado no topo da escada, se passando por gente, fingindo que não está nem ali. Vida de cachorro é suave. Independentemente de morar numa casa de família ou sob a marquise de um prédio abandonado que serve de refúgio para outras famílias que moram na rua. Os cães sabem nada a respeito das situações inconcebíveis e das injustiças sociais engendradas pelos seres humanos. A despeito disso, eles gostam mesmo é de gente. De gente boa. De gente nem tão boa assim. De gente nobre. De gente pobre que tira a comida da própria boca para alimentar o pet que sente fome igual. Amor é um sentimento desigual que não tem nome, mesmo assim a gente inventa um vernáculo mais coloquial.

Rosa, a dona do João, diz que é a sua mãe. Com a propriedade de quem viu o bichinho nascer de parto normal numa barrigada de filhotes absolutamente normais, ela conta que João fica assim nesse estado diferente porque sente saudades graúdas do mar. Sempre que alguém abre a portinhola que dá acesso à praia, ele dispara pela areia, dá um mortal, rodopia, derrapa e mergulha no azul refrescante das ondas. Depois de muito brincar, de muito mergulhar, como se fosse peixe, como se fosse criança, João dá um tempo, arfa saciado das brincadeiras e se senta, mais uma vez, desta feita, sobre a areia firme da orla, donde mira a imensidão calada do Oceano Atlântico.

Ali, ele se aquieta inquebrantável como a escultura do Pensador de Rodin. O dogue cerra os olhos. Põe tento na maré que banha em salvas o seu pelo amarelo e bem cuidado. Sente o vento fresco a balançar os fios do bigode. No que será que pensa o João, o jovem vira-latas caramelo? Em virar peixe? Em nascer gente? Em viajar pelo mundo a bordo de uma tíbia com proporções descomunais? Em latir noutra freguesia? Em subtrair passarinho, com as artimanhas de um gato, quando ninguém estiver vendo, filmando ou escrevendo? Em lamber os pés suaves, morenos, da sua dona que tem nome de flor, em retribuição de carinho, de afeto e de amor?

Diz o ditado que o cão não faz rima e que ele é o melhor amigo do homem. Em analogia, resta a sensação de que o mar é o melhor amigo do cão. Apesar da simplicidade, João demonstra que entende um bocado sobre a essência das coisas. Porque o mar, apesar da instabilidade, da frieza e das ressacas, é mais confiável do que a maioria das pessoas.

Alguém assobia ao longe. João desperta do transe. Levanta as orelhas. Reconhece o timbre. Sabe que é hora de voltar para a casa. Afinal de contas, o jantar está servido e a passarinhada já parou de cantar, feliz em saber que cachorros não voam, a não ser, em pensamento.     

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.