O jardim das finitudes

O jardim das finitudes

Morres em mim, agora, como outros, também, morreram antes, sem sentido. Deixas apenas essa fragrância inútil de gelo que, daqui a pouco, jaz. Mas, antes, era com rosas que sonhavas. Prefiro aqueles dias. Eu fotografava as flores que encontrava, distante. Para enxergar em suas cores, somente as que, com teus olhos simples, mais combinavam.

Não é, nem um pouco, a contragosto que escolho sentir-te como antes. Suadinha do trabalho, a costumeira fragrância de flor. Todas e nenhuma. Seu cheiro a leite, de mãe, também. O rosto todo sorrindo, rosado. Uma nova queimadura fractal que apontava incerta. Descuidada. É a vida! Isso, e ainda isso.

O pai não se reconhece na casa. Perambula, de cômodo em cômodo, removendo a sujeira que tua ausência criou. É um pedaço do caos que, aos poucos, desbota. Agora, tem barba, esqueci de dizer. Os meninos choraram e choram. E chorarão até que sequem as reservas. Não importa. Erigimos um muro infinito entre nós e a dor, aos moldes da cidade de Veiga, e declinamos da dúvida, para preencher nossa estrutura final com as memórias que queremos. Nem sei se dura. Não é o caso clássico de “é permitido sonhar”, estamos enrolando a saudade para depois.

Temos prioridades, agora. A mesa posta, no domingo, sem fartura. Isso era coisa tua. Comemos cercados de nós mesmos, onde antes éramos abrigados por ti. Ainda falamos todos de uma vez, mais de propósito, acredito. Não nos ocupamos de investigar se estás, ali em algum canto, quietinha, à espreita. Ainda estamos naqueles domingos regalados de outrora. Que queres que eu faça sobre o exagero de espaguete que comprei ou aquele parmesão que te agradava? Nada. Não há mais lugar para as coisas.

Há um espaço tenebroso, que se expande, propriamente destinado para guardamos o nada que ficou. Já não existe! Tu que nunca viajaste sozinha, compraste uma passagem só de ida. Não avisou que ia, foi e não virou para trás. Que trem pegaste? Com que conforto partiste? Desapareceste numa segunda. Para que nos acostumássemos com a semana inteira sem ti.

Não há silêncio poético ou vozes enaltecedoras que se instalam. Há o caos dos sentidos! E uma partícula de abismo, que se desenvolve. O filho ver a mãe morta? Deveria ser proibido. Assim como o inverso, suponho. É um direito do egoísta! Deixe. É como uma faixa amarela e preta no horizonte das coisas. Não ultrapasse. Rigorosa. Está ali, invisível, solitária.

Isso tudo, agora. Faíscas de incertezas, se desprendendo do ermo absoluto, mental, e ficando orgânicas, nucleares e complexas. Tudo ao mesmo tempo. Um emaranhado. Sem concessões. E depois o resto. Implicado em existir. Nuvens brancas, fofas, cinzas, azuis, de toda cor que conforta. E a ilusão, sozinha.

Vivo aos casos com dilemas colossais e incalculáveis interrogações irracionais. De onde veio a ideia de que chamar-te Das Dores poderia ser coisa boa? É por demais dolorido saber que tenhas enfrentando, desde sempre, o nome da dor e a dor dos nomes. Como a dor do parto que desembocou em nós quatro. Os filhos de Maria. Os novos órfãos.

A casa da infância, as paredes outrora quentes, suas noites hoje mornas, mãe. Não tem mais as digitais de teus dedos que, inconscientes, firmaram o andar oscilante. Querias viver um pouco mais? Deixaste o mundo para os outros. Tua escolha? Não te cabia as possibilidades.

Deixa-me terminar antes que eu descambe nesse poço infinito de subjetividade. Pois estou às vésperas de pedir-te uma última conversa. Coisa que desejei nos teus dias finais sem saber que eram os derradeiros. Se quiseres, conversa. Ouvirei. Mesmo sabendo que sou eu, oculto, falando comigo mesmo. E, após, virá um suspiro. E mais um, sonoro.

Morres em mim, agora, como outros morrerão à frente. E cada dor renovará a anterior, sem sentido. Elevada estará a memória, uma vez mais e outra. Ela é a única realidade pura, indissolúvel e incontestável.

*Em memória de Maria das Dores Silva de Oliveira.