O suspense psicológico da Netflix que é uma pequena pérola, mas continua desconhecido Dea Planeta / Netflix

O suspense psicológico da Netflix que é uma pequena pérola, mas continua desconhecido

A vida se perde na bruma do tempo e, quando menos se espera, algum imprevisto numa curva da estrada se sobrepõe à normalidade do cotidiano, cinzento e frio. Existir é um ato de bravura que exige o denodo necessário a fim de se derrubar as barreiras todas a que o viver nos submete, manobra cheia de detalhes que só os fortes conhecem, difícil de se aplicar, mas por isso mesmo tão reconfortante. Como o contrato mais importante que alguém poderia assinar, estar no mundo tem cláusulas específicas, condições sem as quais não se pode ter a exata dimensão do que, em verdade, é a vida, com suas reviravoltas características, seus insondáveis mistérios, as manhas absurdas a que somos obrigados a nos habituar. Sem nenhuma lógica que a possa explicar, a vida obedece apenas a suas próprias regras, de onde se extrai o fundamento maior que rege os mais sábios: aprender a arte do olvido. Só é capaz de amar quem é capaz de esquecer. Lições como essas, preciosas, rondam-nos todos os dias, do começo ao fim da vida, tentando fazer com que nos emendemos em tempo hábil a poder aproveitar o que reserva-nos o destino sem maiores dores.

O protagonista de “O Aviso” (2018) não esquece nada e aprende muito pouco. Daniel Calparsoro dá ao público todos os elementos quanto a entender seu filme como o registro excruciante de uma alma que se fragmenta, portadora de segredos insuportáveis ao restante da humanidade. Já a partir da introdução, até um pouco mais do meio, Calparsoro, calcado pelo roteiro de Chris Sparling e Patxi Amézcua, fustiga o espectador insistindo no drama de Jon, uma ex-promessa nacional que hoje tenta manter-se com os pés na realidade tanto como for possível. Campeão de uma série de torneios para matemáticos amadores em anos passados, o desafortunado personagem de Raúl Arévalo estava com o amigo Pablo, de Aitor Luna, no momento em que os dois compravam gelo para uma pequena confraternização oferecida por Andrea, a anti-heroína vivida por Belén Cuesta. Neste ponto, o diretor começa a esquematizar os dados que hão de ajudar o público a acompanhar melhor o enredo, quiçá a também, como Jon, conseguir levantar seus próprios métodos a fim de dirimir o mistério em torno do qual se fundamenta a trama. A loja de conveniência do posto de combustíveis onde Pablo e ele haviam parado torna-se um dos cenários a que Calparsoro mais se vale no decorrer da fluente pouco mais de hora e meia de projeção do longa, muito bem executado à luz de um incontrolável fluxo de consciência do tipo encarnado por Arévalo, cuja esquizofrenia severa começa a se deixar conhecer pela plateia. O filme tem lances de gênio ao explorar com a justa medida o recurso do vaivém no tempo, a fim de ensaiar justificativas para o comportamento obsessivo de Jon, cuja saúde mental se fragiliza um pouco mais graças ao cerco de Andrea. Ex-namorados, os dois se separaram depois de um evento particularmente infeliz na vida de Jon; como se não fosse o bastante, Andrea engata um relacionamento com Pablo, que é baleado durante um assalto à lojinha do posto. Uma série de coincidências, cientificamente atestáveis, segundo Jon, levam-no a deduzir que era ele quem deveria ter sido alvejado e ir parar no leito da UTI, onde só se mantém vivo porque respirando por aparelhos.

A ação que corresponde ao futuro tem por representantes Nico, de Hugo Arbues, e sua mãe Lucía, da onipresente Aura Garrido. Aos dez anos, Nico enfrenta as desventuras mais ou menos corriqueiras e toleráveis da idade, com direito às perseguições de colegas mais velhos, que atravessam o limite da mera implicância para o abuso criminoso. Mãe superprotetora, Lucía se dirige à escola do menino a fim de tirar satisfações com a diretora Amparo, de Patricia Vico, e depois de algum tempo vem à tona a revelação que define os rumos de “O Aviso”, expediente parecidíssimo ao que Oriol Paulo emprega em “Durante a Tormenta” (2018). Na outra ponta, o fatalismo da trama vai ao ápice com o súbito restabelecimento de Pablo e o encontro de Jon com seu destino.

No bloco final, crescem as performances de Antonio Dechent como Héctor, o dono do estabelecimento onde a história central toma corpo, inicialmente visto como suspeito por algo de muito nebuloso no enredo, mas que não se confirma. Surpresas, aliás, são a único eixo num trabalho especialmente bom de Calparsoro, cada vez mais afiado.


Filme: O Aviso
Direção: Daniel Calparsoro
Ano: 2018
Gêneros: Suspense/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.