Um dos filmes mais fascinantes e aterrorizantes da história recente do cinema está escondido na Netflix José Haro / Netflix

Um dos filmes mais fascinantes e aterrorizantes da história recente do cinema está escondido na Netflix

No começo de 2017, um artigo publicado na revista “The New Yorker” despertou a atenção do diretor Matthew Michael Carnahan. Poderia ser mais um relato sobre os intermináveis conflitos entre as tropas americanas e o Estado Islâmico, o Daesh, mas o texto do jornalista Luke Mogelson tinha algo de revelador.

“Mosul” (2018), o filme de Carnahan (já conhecido como roteirista por trabalhos como “O Preço da Verdade” — Dark Waters (2020), dirigido por Todd Haynes; “Guerra Mundial Z” (2013), de Marc Forster; e “Crime sem Saída” (2019), levado às telas por Brian Kirk) narra as desventuras do esquadrão SWAT no Iraque — formado por soldados locais numa última empreitada contra os fanáticos do Estado Islâmico —, empenhado em aniquilar a facção. Os soldados entendem a tarefa como uma questão de honra, e fazem dela o grande propósito de suas vidas. A história, que se passa na cidade que batiza o longa, no norte do Iraque, começa despejando bala em cima do espectador, perdido em meio à confusão, sem captar direito quem exerce que papel ali, alheamento de que os próprios combatentes fazem parte, tamanha a complexidade do cenário para o qual tiveram de se permitir arrastar, a fim de ter alguma chance de sobrevivência.

Depois da ofensiva, Kawa, interpretado por Adam Bessa, policial cujo tio fora assassinado num enfrentamento contra o Estado Islâmico, é salvo pelo major Jasem, o chefe da SWAT vivido por Suhail Dabbach. Kawa mostra o desejo de integrar o batalhão e é admitido entre os guerreiros — Jasem tem um critério muito pessoal quanto a aceitar novos quadros: só escolhe aqueles que já foram feridos ou perderam alguém em luta contra o Daesh. A equipe tem a incumbência de matar até o último soldado do Estado Islâmico, mas não só isso — e esse é um mistério esclarecido apenas no desfecho da trama. Kawa é minuciosamente instruído acerca de como proceder, a causa pela qual vai guerrear e quem é o inimigo, explicações que servem também ao público.

O roteiro de Carnahan prima por nunca assumir um caráter professoral, sendo, pelo contrário, carregado de suspense até um pouco além do que deveria em se tratando de um assunto tão nebuloso para o espectador comum. Mas quase tudo em “Mosul” é palpavelmente verossímil. Carnahan dá a medida exata de que ninguém se exime da obrigação de matar quem quer que considere um adversário, esteja onde estiver. Outras falanges também cruzam o caminho da SWAT; ou seja, a cidade é um verdadeiro campo minado, do qual não se consegue saber coisa alguma.

Em falando de desinformação, as comparações entre o que acontece no Iraque em pleno século 21 e episódios sem dúvida ignominiosos ao longo da história da civilização ocidental — boa parte deles patrocinados pela Igreja —, feitas por alguns críticos a fim de realçar a natureza perversa do Estado Islâmico, vêm à tona depois de apresentado um momento crucial do enredo. Derivação política da religião que, por sua natureza essencialmente teratológica, só poderia degringolar em barbárie — da mesma forma do que representaram as Cruzadas (1095-1291) e a Inquisição, que se estendeu até o século 19, para o catolicismo —, o Estado Islâmico também promoveu a institucionalização da violência, em especial contra mulheres, vítimas de sequestro e estupro, além dos homicídios e torturas de hábito. A discussão efusiva entre o major Jasem e um agente estrangeiro sobre a história do Iraque, por exemplo, é puramente melodramática, quase sem proveito nenhum do ponto de vista histórico. O encanto pelo discurso nacionalista, uma obsessão de iraquianos simpáticos à interferência de tropas americanófilas ou não, é um argumento que Carnahan usa de forma inteligente, sem deixar de dar azo a uma questão que muitos sabidos se esforçam por esquecer: a promíscua interposição entre Estado e a doutrina religiosa está longe do fim, não só no Iraque, como em todo o Oriente Médio — Afeganistão, Síria, Kuwait e Irã, nesta ordem, principalmente. E não estamos mais no Medievo, quando Mosul era uma cidade próspera do reino neoassírio, na Alta Mesopotâmia.

Voltando, enfim, ao tema da verossimilhança: os atores, iraquianos, falam, claro, em árabe, e o filme dispõe de todos os recursos de que poderia quanto a de fato retratar uma guerra civil. Os irmãos Anthony e Joe Russo — dos blockbusters sobre os heróis da Marvel — garantiram o orçamento necessário para que nenhuma picuinha técnica empanasse o brilho do que se vê na tela.

“Mosul” é profundo, ainda que demasiadamente sintético. Em apenas hora e meia, Matthew Michael Carnahan conduz uma excelente história, valendo-se de performances muito acima da média, e entrega um dos mais bem-acabados filmes de guerra lançados recentemente. Se o espectador for capaz de resistir ao caos pertinaz durante toda a narrativa, vai assistir a uma verdadeira aula de como é se viver num campo de batalha.


Filme: Mosul
Direção: Matthew Michael Carnahanhttps://www.revistabula.com/54290-o-suspense-psicologico-da-netflix-que-e-uma-pequena-perola-mas-continua-desconhecido/
Ano: 2018
Gêneros: Guerra/Ação
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.