Plano B para não falhar na Hora H à procura do Ponto G

Plano B para não falhar na Hora H à procura do Ponto G

Ninguém é obrigado a tolerar os chiliques dos outros. Em termos psiquiátricos, o editor do jornal para o qual eu escrevia os meus panfletos era um completo analfabeto funcional. Insensível como uma urna funerária, ou melhor, insensível como uma urna eletrônica, o sujeito nunca me pareceu uma companhia confiável. Aliás, não entendia patavina sobre o processo criativo dos seus articulistas. Arrematou aquela joça pagando uma mixaria num leilão de massas falidas.

Certa feita, requisitou-me para uma conversa a patas fechadas na sua masmorra climatizada, a fim de escoicear-me com palavras e diagnosticar que eu era uma espécie de ser humano estranho que escrevia de uma forma bastante esquisita, algo que estaria gerando mal-estar e repelindo os leitores do diário. Tive vontade de enfiar o ordinário num saco para cadáveres e enviá-lo direto para um regabofe de apoiadores da causa bolsonarista em Brasília. Seu corpo faria enorme sucesso entre os necrófilos golpistas.

Disse-me ainda mais o autoritário senhor, mais conhecido como filho de uma mãe, que, em linhas gerais, o particular pessimismo dos meus textos literários trazia um rastro de amargura, uma aura macabra ao jornal e, justamente por causa disso, justamente porque ele era meu amigo — uma amizade do tipo convidar Jack, O Estripador para um churrasco em casa — esperava que eu melhorasse a autoestima ou seria sumariamente rebaixado para escrevente de bulas de medicamentos para a Revista Bílis, uma sucursal do mesmo grupo editorial que tinha convênio com o Ministério das Pragas e das Doenças.

— Que tal tentar com um pouco mais de ternura, Vencio? — o safardana emendou, com a boca torta decorrente de um derrame cerebral — nem de longe, imaginava que aquele sujeito possuísse um cérebro —, a surrupiar, descaradamente, um verso da canção “Try a little tenderness”, do Otis Redding.

Fui lá em cima e voltei. Tipo um falo cabisbaixo. Sentado na poltrona como um potro a ruminar ideias chauvinistas, o sujeito me explicou em tom professoral que os cavalos não eram ruminantes — ora, não diga — e, muito menos, tinham presença cativa nos hambúrgueres de carne processada das lanchonetes do condado. Em dado momento, pensei em processá-lo com uma cadeirada no meio dos cornos, só que, daí, não teria mais onde me sentar para ouvir tanta baboseira. Já fazia tempo que aquele homúnculo tosco, manquitola, com uma tapa-olho bordado com o brasão do Tessalonicenses, andava a me tirar do sério. Cogitei atirá-lo pela janela, mas, qualquer pobre diabo que caminhasse desavisado pela calçada, a pensar na morte da bezerra, não teria a mínima culpa pelos meus recalques, a não ser, o simples fato de estar zanzando no lugar errado, na hora errada.

Pensei na coisa certa: aproveitar as promoções da Tiro & Queda Entertainment, mais o apoio imoral do governo federal, para me tornar um CAC — Caçador de Ateus e de Coalas —, comprar o não sonhado pau de fogo e mandar aquele destrambelhado ir ver Jesus, porém, me lembrei que eu também não acreditava em Deus, que eu não tinha dinheiro para tomar um Cuspe Sour, quem dirá, para quebrar o quinto mandamento bíblico ao desperdiçar munição contra uma criatura tão mesquinha. Apesar da musiquinha instrumental que tocava no fundo — soava uma maldita versal orquestral de “Besame mucho”, de Ray Conniff e seus pupilos — o sujeito estava sendo obviamente injusto comigo. Sentia-me mais por baixo do que diferencial de sapo. Bateu aquela sensação de fracasso, aquele ímpeto de cometer um plágio e tomar um processo nas costas. Meus leitores, não. Meus leitores — todos os três — sempre me prestigiavam, dando a maior corda ao escrever todo santo dia para o bundão do ombudsman, jurando-me de morte, ameaçando os meus familiares de me manterem vivo e querendo a todo custo o endereço completo, inclusive o CEP, para comparecerem no meu domicílio e me sodomizarem à exaustão com compotas de areia monazítica. Atendendo aos meus pedidos, informaram o endereço da minha sogra, mas, a megera já tinha morrido há décadas e eu não fui sequer avisado para comemorar a data.

Afundei na cadeira, absolutamente decepcionado, aturdido com aquele palavrório depreciativo, aquela conversa fiada, o blá-blá-blá, uma lengalenga danada sobre a minha larva literária que há décadas carcomia as entranhas daquele jornal carniça especializado elogiar o governo central. Eu escrevia muito. Se me deixassem, eu escrevia pra caramba, um dia inteiro se fosse preciso, a derrubar florestas e mais florestas de folhas A4 com um bocado da minha literatura estranha, deprimente, mal-humorada e, acima de tudo, desencantada. Se não podia mais rasgar o verbo à minha maneira e me comportar de forma desagradável, ao menos, seria um cronista hilário. Ou morreria de tédio tentando escrever num estilo que não me dizia respeito. Fazer sorrir nunca fora um ofício fácil. A não ser que começasse por mim mesmo, espinafrando a própria vida. Contudo, não podia expor a intimidade para os maníacos da internet. Os haters me adoravam, o que não deixava de ser perigoso à beça.

Tinha esperança de atingir o orgasmo, ou melhor, tinha esperança de atingir o estrelato, ganhar uns trocados para pagar a conta do gás hilariante, ao escrever, quem sabe, por exemplo, sobre a sexualidade humana, naquilo que ela tinha de mais gozado. Gozado no sentido humorístico, espero ter sido claro. Sexo sempre rendia golfadas nos olhos, ótimos dividendos, piadas impagáveis, bullying e casos extraconjugais supimpas. Que o diga a tia Clarinda que trabalhou durante anos num bordel até se apaixonar pelo tio Odair José que tinha prometido tirá-la daquele lugar e, de fato, a tirou. Confirmo que criei uma enorme ojeriza pelo editor caolho que tinha perdido uma das almas na Guerra do Paraguai e jamais cogitaria retirá-lo da droga de lugar algum, muito menos, de um cabaré, a não ser que fosse direto para o necrotério. Falava sério. Sempre que estava brincando, eu falava sério. A maioria das pessoas não se dava conta dessa particular bipolaridade.

Mas, enfim, eu nasci assim, ansioso, abilolado, irritadiço, de um parto normal num convento anormalmente habitado por freiras que se masturbavam com velas de sete dias fabricadas com sêmen fresco dos visitantes bárbaros, os doces bárbaros. Iria me adequar às novas virgens, ou melhor, iria me adequar às normas vigentes. Vi gente rindo nas minhas costas pelo espelho retrovisor. Deixei estar. Agradaria ao maléfico editor, escreveria sobre sexo e ponto final. Afinal, eu tinha uma ficha corrida extensa com experiências pessoais malfadadas naquela sensível seara da natureza humana, desde a blenorragia causticante até a hemorragia nasal decorrente de um soco na cara.

Inaugurando a nova fase, repleto de ideias nódoas e de fezes na cabeça, estreei o estilo sexual trainer ao discorrer sobre os mistérios do Ponto G. Ainda tinha bastante gente escolada em adultério e putaria jurando que o Ponto G ficava localizado entre os Pontos F e H. Santa ignorância. Que falta de paciência. Era nessas horas que os homens felizes brilhavam dentro das quatro linhas, levando as suas parceiras a arrancar o reboco das paredes com as unhas pintadas. Os carrancudos, não. Os carrancudos quase sempre falhavam ao fazer amor. Estavam mais habituados a pegar ninguém, a fazer nada, senão justiça com as próprias mãos e um bocado de cuspe de entremeio. Para esses fracassados, recomendava um infalível Plano B para não falhar na Hora H à procura do Ponto G. Era muita bobagem escrita de num único lugar, mas, o que havia de ser feito e quem realmente se importava com isso? As pessoas simplesmente nunca liam nada.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.