Novo filme argentino na Netflix mistura Hitchcock e Tarantino e vai te fazer rir, mas também te perturbar

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O passado pode virar um grande problema quando insiste em não passar. Há que se ficar atento quanto às mudanças que a vida nos impõe: amigos de décadas tornam-se estranhos tão logo se reencontram, viver vai se tornando uma aventura completamente fora de controle e, para coroar todo o processo, tentar entender a razão de tanto desajuste redunda em insanidade, violência e crimes. Nem tanto pela vontade de escandalizar e muito mais por ter de dizer as coisas que costumam ficar engasgadas, certos filmes são feitos sem muita ideia de como chegarão ao final — e é exatamente neste ponto que entra o público, emitindo opiniões bastante francas acerca de certas produções tidas por geniais.

O cinema da Argentina segue sua trajetória ascendente, apresentando filmes que recusam categoricamente o estabelecido. Expoente do novíssimo cinema argentino, Nicolás Goldbart emprega um argumento um tanto gasto, mas eficiente, a fim de acentuar a ideia de completa irracionalidade por trás das impressões do personagem central de “O Sistema K.E.OP/S” (2022), um homem perturbado e que não se conforma em ser mero títere num espetáculo tenebroso. Goldbart aposta no delírio a fim de prestar uma homenagem, consciente ou não, aos clássicos dos anos 1980 que imortalizaram o auspense, em especial aquele nicho desabridamente tocado pela violência. Trabalhos como “A Hora do Pesadelo” (1984), de Wes Craven (1939-2015), vão deixando suas marcas em detalhes como a fotografia de Lucio Bonelli e Diego Poleri, dominada pelo vermelho, como se os personagens nunca habitassem um universo paralelo em que a atmosfera se compusesse dessa cor. Gradualmente, o espectador consegue furar a bolha e se misturar a contexto tão sui generis, entendendo, com certa dificuldade, o que pretendem de fato as figuras malditas que evoluem em círculo, deixando a trama meio pesada, até meio confusa, mas se apropriando de alguns elementos e oferecendo muitos outros quanto a movimentar o filme num ritmo incomum, um eterno acelera-e-freia que se espraia para a narrativa em si até que sobrevenha o desfecho, momento em que o diretor insinua que o ciclo recomeça.

Fernando Blansky tem uma rotina estressantemente pacata. Fernando, o roteirista ostracizado de Daniel Hendler, goza da bênção maldita de poder passar semana usando as mesmas roupas, concatenando ideias esparsas para um texto que nunca vem à luz. Enquanto sua sorte não vira, Fernando leva a filha à escola, separa contas a serem pagas e acompanha pelo Facebook os comentários sobre as últimas novidades do cinema, escrevendo uns desaforos, resguardado por um pseudônimo, a Sergio Israel, o respiro cômico defendido por Alan Sabbagh, ao passo que espera a boa vontade de Oso, personagem de Martín Garabal, em analisar seus textos mais recentes. Como o amigo urso se distancia dele sem fazer questão de pensar numa desculpa, o protagonista vê seu tempo, já demasiado amplo, se estender ainda mais. Numa dessas, depois de despedir da mulher, Julieta — de uma Violeta Urtizberea criminosamente subaproveitada —, sai para dar uma caminhada. É quando o roteiro de Goldbart e Germán Servidio introduz o evento que justifica as duas horas de um mistério bem estruturado, que o lança na espiral de violência que o tolhe sem prévio aviso.

O esquema de pirâmide financeira que seduz o personagem central, a que o título faz referência, explica muito da incomunicabilidade de Fernando, seu desajuste frente a um mundo que segue sem conhecer bem, sua ingenuidade fundamental acerca de tudo. Uma vez que aceita integrar o plano, considerado fraude em diversos países, anui que todos os seus passos sejam milimetricamente escaneados e ele assuma a fera que sempre havia sido, ávida por abandonar a jaula em que é compelido a permanecer. Itens como um grande pôster de “Blow Up”, de Michelangelo Antonioni (1912-2007), dispostos pelo apartamento do protagonista reforçam essa sensação de desamparo, só aplacada nos trechos em que Hendler e Sabbagh contracenam, dobradinha muito feliz encampada pela direção segura de Goldbart.

Seguindo um encadeamento próprio, “O Sistema K.E.OP/S” elabora tropos perturbadores sobre o conceito da necessidade de vigilância inclemente, de todos a qualquer tempo, uma realidade de que ninguém foge na era psicótica em que vivemos. O recado que o filme passa, sem querer ser pedante, mas meio saudosista, é que a vida já foi bem melhor.


Filme: O Sistema K.E.OP/S
Direção: Nicolás Goldbart
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Comédia/Mistério
Nota: 8/10