Em “Uma História Social da Mídia: de Gutenberg à Internet” (2002), o historiador inglês Peter Burke defende, corajoso e visionário, que nenhum veículo de comunicação de massa ascende para substituir ou vencer algum outro, mas como complemento, oferecendo uma nova perspectiva sobre a difusão cultural. Aconteceu dessa forma com o surgimento do rádio, em 1887, graças aos estudos de Michael Faraday (1791-1867), aprimorados por Heinrich Rudolph Hertz (1857-1894), que NÃO substituiu o jornal impresso, uma possibilidade desde a criação do sistema de gravação em tipos móveis pelo mecânico alemão homenageado por Burke no título de seu livro; com a televisão, desenvolvida por John Logie Baird (1888-1946) em 1926, popularizada e tornada comercialmente palpável um quarto de século depois, e que por sua vez NÃO tomou o lugar do rádio; com a internet desde a segunda metade da década de 1990, que não só não destituiu a tevê de seu trono quase invencível como adaptou-se a ela e a seu antecessor, veiculando programas inteiros, disponíveis a qualquer momento à distância de um clique e colocando termo à escravidão do público pela famigerada grade de programação — é uma verdade insofismável que plataformas muito mais recentes no multiverso da própria web, caso do YouTube, têm marcado cruzes na coronha com uma velocidade frenética, deixando a quase centenária filha de Baird cada vez mais perdida. É inquestionável que cada um desses canais dispõe de suas particularidades e seus encantos, mas sem dúvida é o cinema, romântico inveterado e sonhador incorrigível, quem mais se aproxima da porção mais lírica da alma do homem.
As experiências com projeções fantásticas de uma realidade possível só com a cumplicidade da plateia — e a providencial ajuda da física e da anatomia humana, que juntas nos proporcionam a ideia de que quadros estáticos assumem vida e se movem em qualquer direção — foram ganhando terreno em 1895 pela insistência de Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948), irmãos franceses desde sempre tomados pelo sonho obsessivo de fazer a humanidade enxergar o que não se deixava ver. Cinema passou a ser sinônimo de mágica, uma arte cujo alcance popular sempre dependeu de tecnologia, mas que cresce exponencialmente nos momentos em que o homem acusa o golpe e se dói pelas sucessivas crises das sociedades contemporâneas. Aos poucos, filmes deixaram de ser válvulas de escape ao humano desespero para incorporarem a necessidade por informação, reflexão filosófica, transformação social e sátira política. Felizmente. Houve um tempo em que o cinema, bem como a televisão, tinham importância decisiva na vida das pessoas, equivalendo-se, um dando à outra o suporte necessário, retroalimentando-se, fomentando revoluções e defendendo as mesmas demandas. Irmãos de pais diferentes, o cinema e a televisão foram abatidos pela violência da internet, essa, sim, uma inimiga por excelência de tradições, incansável quanto a fazer imperar suas vontades, profética, endiabrada, capaz de inventar necessidades nas quais ninguém havia pensado, mas que uma vez oferecidas revestem-se do manto da ibiquidade e da premência.
Ainda que parta de um argumento equivocado (e enganoso), o diretor cearense Halder Gomes, um Lumière de seu tempo, reacende o brilho do cinema feito no sertão do Nordeste do Brasil com “Cine Holliúdy” (2012), registro íntimo de gentes e lugares com sede de poesia. Por óbvio, nos anos 1970, quando o filme é ambientado, não existia internet, e por essa razão, só por essa razão, Gomes não comete um erro tão grosseiro, mas sua tese cai por terra graças a um comentário que se lê numa tela negra depois da última cena. A propósito, é curioso como a abertura do longa, também depois de informações sobre a força do cinema de então, perdida para a capilaridade da tevê, não tem nenhuma relação com o desfecho. Há cinquenta anos, a televisão experimentava um processo de profissionalização e modernização galopantes e tornava-se mais e mais bem-cuidada — observadas as limitações tecnológicas da época —, ao passo que os aparelhos iam ficando mais baratos e o conforto de se poder sintonizar conteúdos plurais (sempre se frisando a precariedade dos recursos se comparados aos de agora) sem sair de casa, acabou por empanar a onipotência da tela grande. De pedra a vidraça, a televisão atravessa momento parecido ao do cinema na década de 1970, subjugada por computadores e celulares ligados à rede mundial de computadores.
O herói de “Cine Holliúdy” é Francisgleydisson, um aficionado por cinema, sem margem para explicações muito racionais: ele gosta e é o que basta. O personagem, incorporado com vigor por Edmilson Filho, já havia tentado manter uma pequena sala de projeção, mas tivera de desistir do negócio porque acossado pelas autoridades de um regime de exceção em franca subida, pela burocracia corrupta desse regime, hábil em criar dificuldades para vender facilidades e, por óbvio, pelas dívidas, pedra no sapato de todo empresário no Brasil, tanto mais no setor cultural. Boa parte da leveza do roteiro de Gomes se deve à inclusão de um núcleo familiar em torno do protagonista, removendo-lhe uma possível condição de mártir ou de Dom Quixote, profético, grandiloquente e tolo ao tentar combater os moinhos de vento que podem trucidá-lo com um movimento qualquer. A personagem de Miriam Freeland, Maria das Graças, a Graciosa, com quem Francisgleydisson é casado, e o Francisgleydisson Júnior de Joel Gomes são o esteio de que o mocinho de Edmilson Filho precisa para não abdicar do privilégio de trabalhar com o que gosta.
O pulo do gato em “Cine Holliúdy” é a pletora de regionalismos, com destaque para as gírias saborosamente fesceninas ditas em bom “cearensês” pelos frequentadores do novo cinema de Francisgleydisson que serve de título ao filme. Registro de um Brasil profundo, atrasado, mas que teima em perdurar, o trabalho de Gomes sem querer explica o estado a que chegamos, mormente na gestão de bens e aparelhos culturais. E continuamos a ver o mesmo filme.
Filme: Cine Holliúdy
Direção: Halder Gomes
Ano: 2012
Gêneros: Comédia
Nota: 8/10