O corpo é uma casa arrombada pelo tempo

O corpo é uma casa arrombada pelo tempo

O corpo é uma casa arrombada pelo tempo. Entra ano, sai ano, o controle esfincteriano vacila, se desajusta. O sangue coalha no seio varicoso de veias que perdem o molejo da elasticidade para adquirir a dureza plástica de um cano ou de um canudo. Mudo, o cérebro pensa que aquilo tudo é um ledo engano, fecha curto, passa pano e requenta a marmita encefálica com papas de neurônios, sob a tempestade de sinapses chocantes dos axônios desencapados. Para tudo quanto é lado do organismo humano, prepondera um esforço sobre-humano para não se colapsar numa montanha irreconhecível de músculos e de ossos. Ocioso como uma sombra, chega o momento temido em que o corpo físico já não atende mais ao comando de um simples pensamento. Nesse momento, a pele crispa. O cuspe seca. A lágrima adocica. As gônadas gaguejam. O arcabouço muscular murcha feito um pneu descalibrado. Desequilibrado, o labirinto do ouvido desgoverna a quilha do navio que navega a alma por um mar bravio, sob réplicas de envelhecimento. Antes precioso, a maior parte do conhecimento adquirido ao longo da existência perde o significado, invalida-se em si mesmo, para naufragar alienado nas gavetas descontentes do esquecimento. O corpo torna-se mais frio do que aquecido. As carnes tremulam. As tramas inauguram histórias sem sentido. Tem gente que acorda sem nem mesmo ter dormido. Desata uma profusão de pensamentos anômalos que dançam de rostinho afastado as polcas da confusão mental. Os beijos perdem o sabor. Os olhos cismam. Os parentes viram uma cambada de estranhos. O soro fica ralo. O falo fica murcho. O corpo marcha sem viço, combalido, de volta para o lugar de onde nunca devia ter nascido. A vida é uma festa para a qual todos fomos intimados. E ela sempre escapa da clausura dos sonhos mais destemidos. Os canos intestinais, quase sempre irritáveis — eu entendo o rancor milenar das tripas — limpos de qualquer culpa, vazam horrores com justeza de causa. A arruela terminal espana a rosca. De tão nervosa, a bexiga neurastênica chora para desaguar sobre nuvens de fraldas os seus oceanos de mijo. O coração, que um dia foi mole agora é rijo. Ele mais apanha do que bate. E bate, muitas vezes, sem necessidade, sem ritmo, resignado ao saber que a maior parte das vísceras vige apenas de corpo presente. A alma parte para onde o coração sente. Alvíssaras à morte, o porto definitivo onde atracam as naus da decadência, sob a obsoleta anuência de corpos em desalento que viajaram durante tanto tempo, trôpegos, vaidosos, esperançosos, pelas épicas trilhas do desconhecimento a riscar o mapa da vida.