Filme com Susan Sarandon na Netflix é gentil, inteligente e vai falar com sua alma Divulgação / Sony Pictures

Filme com Susan Sarandon na Netflix é gentil, inteligente e vai falar com sua alma

Verdadeiras mães não são exatamente racionais — e muito menos civilizadas. Depois de vencer as metafísicas preocupações quanto à consistência dos detritos fisiológicos; as agonias da adaptação à escola, o primeiro ambiente em que os filhos passam a responder por seus próprios atos com alguma autonomia; a batalha inglória e quase trágica da adolescência; a incerteza quanto a ter feito um bom trabalho, observando de longe (mas não muito) o desempenho profissional dos pimpolhos, torcendo e rezando para que se firmem na carreira de uma vez por todas, as mães gozam de algum respiro para, afinal, cuidar de si mesmas e fazer boa parte das coisas que foram protelando ao longo da vida. O questionamento central, duro, mas necessário, é sobre se ainda há tempo, e a partir da resposta que dele nasça e elaborar uma análise muito mais profunda, transformadora até, quanto a se querer ou não essa segunda chance, desejar ou não triunfar diante da facilidade de viver uma vida de outra pessoa, por mais que essa pessoa seja a razão maior de se ter estado no mundo até o presente momento.

A maternidade parece mesmo um eterno drama, repleto de escolhas de Sofia — e até daquelas de Salomão —, muito mais para algumas mulheres que para outras, que se esclareça. Há mães que não sabem se desligar dos filhos em nenhuma circunstância, e, aos poucos, o cuidado vai se metamorfoseando em outra coisa, nada louvável e quiçá patológica, como uma borboleta tornando ao casulo para voltar a ser a lagarta desenxabida de sempre. Marnie Minervini assume sem pejo seu lado paranoico e não se importa em exceder limites, saudáveis em toda relação, como Lorene Scafaria explicita já no título de seu “A Intrometida” (2015), retrato ora alegre, ora triste — mas sempre poético — de um vínculo cheio das óbvias particularidades que fazem desse encontro o mais especial para a maioria de nós. Um laço genuíno e eterno, que, malgrado as urgências que se vão sobrepondo no dia a dia atribulado de alguém que não renuncia à própria vida, vai se tornando mais e mais estreito pela vida afora, deixa ensinamentos para ambas as partes e, o principal, robustece a vontade de arrostar as diferenças e não ceder à tentação do isolamento.

Susan Sarandon é quem faz a mágica de “A Intrometida” acontecer. Sua personagem-título, uma quase septuagenária meio perdida depois da morte do marido, Joe, se ancora na filha, a roteirista Lori, vivida por Rose Byrne numa performance à altura da excelência do trabalho de Sarandon — e por pouco não vão as duas ao fundo. O comportamento de Marnie, digno da inveja de filhos enjeitados em todo o mundo, é a principal fonte de desgaste justo para a única pessoa que teria todos os argumentos a fim de defendê-la. Enfrentando graves problemas de autoestima desde que Jacob, o ator alguns anos mais novo interpretado por Jason Ritter a deixara, Lori mergulha com tudo no trabalho, e mesmo assim nele não vai tão longe. Tudo o que ela queria mesmo era uma passagem só de ida para lugar nenhum, ao menos até que a poeira assentasse, mas, para piorar, a mãe resolvesse se mudar de Nova Jersey para Los Angeles, onde a filha mora. Sarandon tira de letra os conflitos dessa fase inédita do relacionamento das duas, conduzindo sua personagem com equilíbrio quase cartesiano entre a euforia do reencontro e a depressão latente por não ter de Lori a mesma reação. Marnie, na verdade, projeta na filha seus próprios medos, e se há um comportamento em comum é precisamente a tibieza com que encaram as etapas malquistas da vida. Scafaria elabora seu texto a fim de transmitir ao espectador a sensação de que a morte de Joe, há cerca de dois anos, poderia ser o motivo para tanta melancolia, de Marnie e da filha única, mas logo fica claro que suas carências vêm de muito mais tempo e não se explicam apenas pelo evento funesto. Fica subentendido, mas cada vez mais inescapável que a protagonista anseia por um novo Joe em sua vida não no que um homem pode oferecer a uma mulher, mas como uma pessoa a quem tenha a possibilidade de se dedicar submissamente, com devoção mesmo. Em não achando essas condições em Lori, parte para estratégias bem mais radicais: se propõe a pagar o casamento de Jillian, a amiga que a filha não vê há algum tempo, papel de Cecily Strong, com a companheira, Dani, de Rebecca Drysdale; desenvolve uma louvável atividade voluntária num hospital das redondezas; e encoraja a estudar o personagem de Jerrod Carmichael, Freddy, vendedor das quinquilharias eletrônicas que ela mal consegue operar, mas nas quais logo fica viciada — e quando sabe que o rapaz começou o curso de engenharia (ela havia sugerido direito), se oferece para buscá-lo na faculdade e levá-lo para casa. Por falar em vício, na virada do segundo para o terceiro ato, uma dispensável passagem sobre a larica furiosa depois da ingestão acidental (!) de bolas de maconha, nada engraçada, abre alas para o soberbo talento de J.K. Simmons como Zipper, o policial aposentado que havia conhecido quando fora figurante num filme de baixo orçamento, a grande promessa de felicidade para essa solitária ociosa.

“A Intrometida” escorrega feio ao desperdiçar os comediantes jovens de seu elenco, mas a força do enredo e, outra vez, Sarandon, Sarandon, Sarandon, nunca deixam a peteca cair. Lori Scafaria apresenta um trabalho enxuto, visceral, comovente e que decerto cala fundo em gente de setenta, quarenta ou vinte anos.


Filme: A Intrometida
Direção: Lorene Scafaria
Ano: 2015
Gêneros: Comédia/Drama/Romance
Nota: 9/10