Quase me casei com Olivia Newton-John nos tempos da brilhantina

Quase me casei com Olivia Newton-John nos tempos da brilhantina

No dia em que eu nasci, a música mais tocada no mundo era “Help”, de Lennon & McCartney, na versão original da melhor banda de rock de todos os tempos: The Beatles. A segunda melhor banda era Led Zeppelin; a terceira, Pink Floyd. O texto é meu, o rol é meu, a vida é minha e gosto não se discute, principalmente num contexto em que manda quem escreve e obedece quem é leitor de juízo.

Por favor, não me abandonem. É tudo verdade, embora, não passe de uma brincadeira. Não sou tão autoritário quanto possa transparecer. Ocorre que dormi de calça jeans na última noite. Voltando à vaca fria, quando eu nasci de parto normal, o anormal era a pessoa não gostar de ouvir os Beatles. Dados biográficos dos Garotos de Liverpool dão conta de que “Help” foi escrita em poucos minutos, numa única sentada. Os caras estavam exaustos. O peculiar é que a letra retratava a insegurança e a angústia que Lennon e seus colegas de banda sentiam em relação às consequências funestas do sucesso estelar, como a bajulação, o excesso de trabalho e a falta de privacidade para curtir a vida como uma pessoa ordinária.

De certa forma, a letra de “Help” talhou o meu destino de insegurança e de necessidade de apoio moral. Mas, não é a respeito disso que vou escrever hoje. Não somos íntimos a tal ponto, não estamos sentados numa mesa de bar tomando chope e vocês não têm cacife para me instruir numa psicoterapia. Também não têm a obrigação de me aturar, é verdade, mas, chegou a hora de se fazer caridade, de vocês continuarem comigo até que a morte ou uma virgula nos separe. Continuemos, sem ressentimentos, que eu estou com um pressentimento de que a gente vai se entender.

Não sei se acontece com vocês. Imagino que sim. Eu tenho a vida marcada pela música. Sabem quando toca aquela canção que nos deixa paralisados? Basta ouvir os primeiros acordes de um hit marcante para se retornar pelo túnel do tempo e se ver novamente dentro do contexto de um determinado momento histórico. Não me é usual correlacionar as canções com os momentos desagradáveis. Regra geral, a música quase sempre me conduz às recordações felizes.

Tenho experimentado variados graus de melancolia sempre que um artista admirável morre. A cantora britânica, naturalizada australiana, Olivia Newton-John, faleceu nessa semana vitimada por um câncer de mama contra o qual digladiava há anos. Não é preciso ser novo, muito menos, baiano, para constatar que o grande mistério do planeta segue judiando, testando a saúde mental da gente. E borrando a juventude do corpo. E turvando a memória. E acuando quem se deixa acuar. Eu, por exemplo. Não tenho medo de morrer. Muito menos, pena de morrer, como brincou Chico Anysio. Sinto raiva da morte, mas, ninguém tem nada a ver com os meus recalques, não é problema de vocês, eu reconheço, vamos continuar, não nos dispersemos, já estou quase terminando, aguentem firme.

No auge da carreira, Olivia fez um par romântico com John Travolta no filme “Grease — Nos Tempos da Brilhantina”, um musical dos anos 1978 que teve retumbante sucesso nos cinemas ao redor do mundo. Na época, eu tinha treze anos e fiquei completamente arrebatado pelo filme, pelas canções, pela beleza dos protagonistas e pela juventude esfuziante do elenco. Eu, a torcida do Flamengo e metade do planeta ficamos irremediavelmente devotados a Olivia Newton-John; a outra metade, caída por John Travolta.

Olivia era jovem, linda, cativante, perfeita para ser a minha namorada. Aliás, a segunda namorada. A primeira — sem que a dita-cuja soubesse — foi a minha professora do segundo ano do ensino fundamental que, naqueles tempos, era chamado de ensino primário. Primariamente, eu vivia no mundo da lua, era um fingidor que se amarrava em amores platônicos. Hipnotizados pela jovialidade e pela frescura de “Grease”, a gente procurava um par semelhante na escola ou no bairro. Com algum esforço se encontrava alguém matando cachorro a grito. Ao contrário dos adultos, os jovens fantasiavam o tempo todo. Era como fogo na pólvora. Amar era dar milho aos bodes.

Passei alguns dias apaixonado pela Olivia Newton-John, até surgir uma nova paixão por uma mulher de quem não me lembro mais. Ah… Foram tantos fracassos no amor. E eu perdia também nos jogos, um verdadeiro escândalo. Não me perguntem quem foram as vítimas, pois, a minha memória anda em pandarecos. A trilha sonora de “Grease” era sensacional. Pelo menos, eu gostava e é o que conta. Não se esqueçam: eu tenho a caneta. Dentre tantas canções que emplacaram, “Hopelessly devoted to you” era a mais tocante. A letra era ingênua, melosa, bem ao estilo que os adolescentes curtiam. Já fui besta um dia e já faz muito tempo que a vida real deu um basta nisso tudo.

Fui pego no contrapé com a notícia da morte de Olivia Newton-John. A sua lembrança remeteu-me ao passado longínquo de paixões intensas e de ilusões passageiras ao estilo risco n’água. A imagem que eu tenha dela nunca se apagará. Olivia foi elegante até a morte. Ela é mais uma peça que tomba no imbricado tabuleiro da vida. Deus joga mal à beça, mas, deve gostar muito de música, senão, parava de levar tanta gente para cantar ao seu lado. Tomara que, ao menos, ele pague o couvert artístico.

Eu não sei bem o que fazer. Eu não sei bem como sentir. Help me if you can I’m feeling down. A par de tamanhas dúvidas existenciais, ligo o som num caixa que opera sem fios — uma loucura high tech — ouço de novo as canções de “Grease”, de cabo a rabo, e saio rebolando com o rabo entre as pernas. Se houver música no paraíso e se eu estiver nas suas contas, Senhor, juro que te perdoo.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.