Filme com Michael Keaton na Netflix vai te tocar e mudar sua forma de enxergar a vida Divulgação / Netflix

Filme com Michael Keaton na Netflix vai te tocar e mudar sua forma de enxergar a vida

A vida humana tem um valor relativo, e a sentença não tem nada a ver com alguma possível elucubração filosófica. É isso o que o advogado Kenneth Roy Feinberg comprova ao infundir em seus alunos, durante uma aula na faculdade de direito, uma dúvida envolta numa bruma de cinismo e indignação: quanto pagar por uma vida?

O personagem de Michael Keaton em “Quanto Vale?” (2021), um causídico famoso pelo rigor com que conduz os casos que defende, balança ao se deparar com o maior desafio da carreira: precisar o valor que cada família atingida pelos atentados terroristas às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, deve receber. Para tanto, chefia a comissão que desenvolve o Fundo de Compensação às Vítimas dos ataques, chancelado por uma lei do Congresso americano, a fim de dar algum alento aos parentes que perderam pessoas que amavam na ofensiva, o que também impediria a enxurrada de ações contra as duas companhias que tiveram aeronaves sequestradas pelos terroristas.

Por mais que Feinberg negue, a discussão filosófica pega na veia no filme da diretora Sara Colangelo. À luz do direito, a vida de uma faxineira e a de um CEO de multinacional não são a mesma coisa. Em caso de sinistros, que é como o ordenamento jurídico se refere a eventos inesperados, que não raro redundam em morte, há que se calcular as indenizações de acordo com algumas variáveis. A idade de cada vítima é uma; outra, se o morto sofria de alguma doença degenerativa ou terminal, o que, trocando em miúdos, significa que mais cedo ou mais tarde, a pessoa já iria morrer mesmo, o que joga o valor do ressarcimento ao rés do chão. Contudo, o fator que de fato interessa é o quão profícuo era o indivíduo, o quanto ganhava, o quanto ainda teria a receber se permanecesse no mesmo cargo pelo tempo equivalente ao intervalo até a aposentadoria. Na tentativa de reparar um mal, a lei às vezes se torna tão abjeta quanto ele.

Auxiliado por sua sócia, a advogada Camille Biros, de Amy Ryan, Feinberg administra a tempestade de conflitos entre os interesses das empresas aéreas, a letra fria dos preceitos legais e os familiares daqueles que tombaram nos atentados. A relação não é fácil, as reuniões são sempre tensas, e tudo tende a piorar com o envolvimento crescente de Charles Wolf, vivido por Stanley Tucci, empresário, músico e piloto nas horas vagas, cuja mulher, Katherine, fora incinerada pela onda de calor de mais de mil graus quando uma das torres é atingida. Visivelmente ultrajado pela proposta do grupo liderado pelo especialista em mediação de disputas, sentimento que faz questão que Feinberg conheça, Wolf cria o Fix the Fund, iniciativa que visa a sanar vícios processuais. A partir de então, “Quanto Vale?” se esmera em compreender as implicações práticas na vida de cada reclamante, todos com demandas tão íntimas quanto urgentes.

O filme adquire a natureza de documentário ao preterir o modelo de escolher um personagem que represente o mote central da história e dá voz a um elenco anônimo, que personifica casos reais envolvendo a relação dos autores das ações com a tragédia, esmiuçando o impacto da chegada da morte bárbara e sem prévio aviso para alguém tão próximo. O roteiro de Max Borenstein destaca as sequências em que pessoas comuns expõem seus dramas e suas inquietações, quase didaticamente. Como proceder quando os requerentes são imigrantes sem visto? O que fazer se quem precisa de compensação é o parceiro homoafetivo de outro homem, quando a união civil entre pessoas do mesmo sexo não era reconhecida pelo estado de origem de nenhum dos dois?

Descrevendo um cenário pouco promissor para a empreitada de Feinberg, que precisava registrar 80% dos quase seis mil elegíveis a alguma indenização até 3 de dezembro de 2003, 26 meses depois dos atentados, a narrativa se vê tomada por uma reviravolta algo artificial, graças à adesão retardatária de Wolf, que teria passado a concordar com o fundo concebido nos moldes propostos pelo advogado porque os dois haviam tido, enfim, uma conversa definitiva e o empresário enxergara em Feinberg um homem bem-intencionado. A trama derrapa um pouco nesse particular, em especial da perspectiva fática, restando tudo nebuloso demais. Nunca se vai saber exatamente o que de tão importante Wolf e Feinberg conversaram — não pelo filme de Colangelo, pelo menos —, uma vez que a sequência no teatro, quando os personagens de Tucci e Keaton se encontram, não dá a entender que tenha se passado nada de mais naquela ocasião.

O trunfo maior de “Quanto Vale?” é conseguir partilhar o enredo por uma quantidade incomum de atores coadjuvantes, em que a ênfase em personagens que geralmente passariam batidos, como a mulher e o irmão de Nick, um agente do Corpo de Bombeiros de Nova York morto numa das operações de rescaldo, interpretados por Laura Benanti e Chris Tardio, chegam à hora exata e chacoalham um pouco mais as convicções do experimentado Feinberg.

Ao fim de quase duas horas, “Quanto Vale?” não consegue responder à pergunta que o próprio título do filme traz, mas nem precisa. Depois de certa idade, todos sabemos o que pensam juízes, congressistas, conhecemos o mundo. Não chegamos a conhecer a vida, mas percebemo-la o suficiente para saber que a lei iguala as pessoas, mas há aqueles que são mais iguais que os outros. O que nunca se deve fazer é se conformar, e nisso “Quanto Vale?” é determinante.

Filme: Quanto Vale?
Direção: Sara Colangelo
Ano: 2021
Gênero: Drama
Nota: 9/10