“As Coisas de que não me Lembro, Sou”, de Jacques Fux, me faz lembrar de coisas que não me lembro e que você também não vai se lembrar. O momento em que nasci, da primeira palavra dita, do toque no corpo nu, da boca sem dentes, do primeiro grito de reprovação recebido; quando comecei a ler, a escrever ou a primeira vez que vi de perto a loucura dos outros e a minha. E a loucura do amor? “Não me lembro do amor, mas era só isso que vivia.”
De forma poética, o autor vai tecendo lembranças, costurando gerações de testemunhos, seguindo os ecos do que houve e ainda se ouve consigo, sem saber. Ele mergulha no abismo original. Não se lembra se é iídiche ou português, da inundação que banhou seu corpo com o “canto das rezas matinais que não se recorda das palavras, nem tampouco o que cantava com fervor numa língua que nada entendia”. A obra persegue o instante indeterminado que define sua existência, tal como o som das palavras escutadas, pronunciadas, silenciadas, o choque da linguagem perfurando o corpo, greta fundante que só se pode suspeitar, confabular, alucinar, delirar… “Não me lembro de aprender nada, apenas fingir, falsear, fugir.” Sim! Somos seres ocos, todo mundo é louco. “Não me lembro das coisas que esqueci para poder viver.”
Jacques Fux persegue com sua escrita o locus ausente de sentido, raiz da língua esquecida na ficção do que se diz ser. Eco de um inconsciente real, imemorial. Existo onde não penso, onde não digo, onde não lembro… sou.
Assim, o autor nos transporta a outra dimensão, aquela que não se fixa nas páginas da história, um vivido sem sentido, instante da pura existência. “Não me lembro de colorir, de encaixar brinquedos, de jogar objetos em rebeldia […] de gritar, fazer pirraça e calar…” O que por aí se passa não se deixa apreender, impossível de dizer, de se lembrar, mas que se experimenta: “quentura inaugural percorrendo o corpo”, passagem do real, perdição.
Não se lembrar não apaga o que da existência se passa na fenda que transpassa “a barbárie, a poesia e o amor”. Assim, “não me lembro de quando começou a sentir no próprio corpo e na fala o não pertencimento a algum lugar”, do instante inesperado, quando a coisa da vida se ativa, traumatiza e faz ser: “Não me lembro de estranhar o nome Auschwitz ou de compreender que genocídios não eram coisas cotidianas e banais”.
Não me lembro quando foi que li o que não me lembro com tal clareza e radicalidade. Enfrentar a leitura deste livro é encontrar-se diante da imensidão do vazio, do oco, do louco, do impacto inaugural que perfura o corpo, que vibra e resta como um buraco cravado na origem do ser e de onde tudo parte e partimos. “Não me lembro que a vida pudesse ter outro sentido que não fosse a própria existência.”
O livro “As Coisas de que não me Lembro, Sou” é uma publicação da Editora Aletria, leitura enraizada num objeto lindo que não dá para esquecer. A ilustração, de Raquel Matsushita, é um esforço de poesia, tradução surrealista de coisas de que não me lembro, mas que existem, resistem, insistem como viva ausência que pulsa no que sou.