Um dos filmes mais angustiantes e perturbadores da história do cinema chegou à Netflix Divulgação / Paramount Pictures

Um dos filmes mais angustiantes e perturbadores da história do cinema chegou à Netflix

A sorte favorece quem trabalha, mas há quem pareça especialmente agraciado pelo destino. Há quem passe a vida tentando uma oportunidade e, por mais que méritos que reúna, não chega nem perto do quão sobem alguns afortunados que, a despeito do pouco zelo com o decoro, com a dignidade, com a própria vida, sua e dos outros, vão muito mais longe do que qualquer um poderia supor. Essas almas destacadas do resto da pedestre humanidade, dotadas de uma espécie de luz interior que, malgrado empanada muitas vezes, as livra de situações invencíveis para os simples mortais, fazem do mundo um lugar particularmente complexo, ora deixando-o mais habitável, ora transformando todo o ambiente a sua volta num perfeito caos. Quando são capazes de catalisar ao menos parte da energia que irradiam para construir, a tendência é que se levantem grandes obras; por outro lado, se essa força permanece represada, sendo movida só por meio de estímulos inerciais, nem sempre (e quase nunca) o que se observa converge para um cenário harmônico, e como Pandora depois de aberta a caixa, as pessoas a sua volta temem o pior, rogando para que de fato reste a esperança ao final.

Robert Zemeckis é um dos diretores mais sofisticados do cinema. Criando soluções técnicas como enquadramentos acrobáticos e valendo-se de fotografia e trilha que tornam mais ricas as histórias que escolhe contar, Zemeckis tem o condão de sempre fomentar uma nova perspectiva sobre um assunto aparentemente superficial ou mesmo esgotado. O diretor preserva a tradição em “O Voo” (2012), elevando o nível de discussões acerca de moral, livre arbítrio, abuso de drogas e retidão de espírito de um homem em busca de redenção, ainda que inconscientemente, e não obstante faça de tudo para se autossabotar e deixar o espectador no mínimo ressabiado quanto a sua figura. Zemeckis é um mestre em expor a porção mais sombria de tipos bondosos em essência, mas que se perdem por ou outro motivo, casos do personagem-título de “Forrest Gump – O Contador de Histórias” (1994) e de Mark Hogancamp, o protagonista de “Bem-vindos a Marwen” (2018). No que diz respeito a William “Whip” Whitaker, o piloto vivido por um Denzel Washington sempre impecável.

Whip é um piloto veterano cuja tolerância ao álcool e drogas ilegais transformou numa máquina autodestrutiva, que irradia essa energia negativa para todos quanto se aproximam dele. Já na abertura, o diretor o situa com Katerina Marquez, Trina, a comissária de bordo interpretada por Nadine Velazquez. Os dois passaram toda a noite na cama, em folguedos amorosos regados a uísque e cocaína, e minutos depois já começam a se aprontar para decolar outra vez. Washington dá a profundidade necessária a seu personagem, um sujeito no limite da solidão patológica, que faz da carreira seu esteio. Frio o bastante para embarcar dispensando a Trina apenas um cumprimento formal, Whip só recebe telefonemas da ex-mulher Deana, papel de Garcelle Beauvais, e do filho Junior, de Kwesi Boakye, quando eles precisam de dinheiro. Ao entrar na cabine e sentar-se na cadeira de comando, o copiloto Ken Evans, vivido por Brian Geraghty, percebe que há alguma coisa errada com seu superior.

Zemeckis faz excelente uso da reviravolta proposta pelo roteiro de John Gatins, momento em que Whip saca da manga seus talentos de aeronauta, manobrando o avião de modo a fazê-lo se deslocar de cabeça para baixo, controlando uma pane severa, até que o sistema ficasse outra vez estável e ele ousasse a aterrissagem dramática no terreno de uma igreja. Das 102 pessoas a bordo, salvam-se 96, mas apesar de ser considerado heroi por grande parte da opinião pública, o comandante passa a ser caçado por representantes de uma entidade de classe, como Chesley Burnett Sullenberger III, o homem por trás do manche da aeronave pousada à forca no leito do rio Hudson em 15 de janeiro de 2009, biografado por Clint Eastwood no ótimo “Sully: O Herói do Rio Hudson” (2016).

“O Voo” ataca a questão moral que afeta Whip lançando mão de duas frentes. Na primeira está Nicole, ex-garota de programa viciada em opioides que se esforça por trazê-lo à razão, um excelente desempenho de Kelly Reilly; no campo oposto, Harling Mays, o traficante escrachado de John Goodman, acha que seu cliente e amigo mais que o direito de se drogar, deve continuar a fazê-lo, uma vez que a abstinência por uma parada brusca poderia ser um golpe duro demais, quiçá mortal. A sequência em que, internado, Whip se depara com um paciente sofrendo de câncer em estágio terminal, atuação digna de Oscar de James Badge Dale, é assombrosamente elucidativa e ajuda a entender a decisão acertada que o protagonista toma no desfecho do longa, momento em que Zemeckis defende que o caminho da salvação é tortuoso, dolorido e feito de escolhas tidas como irracionais por quem não está na pele daquele que é julgado.


Filme: O Voo
Direção: Robert Zemeckis
Ano: 2012
Gêneros: Drama/Thriller
Nota: 8/10