Quis ter publicado esta crônica no exato dia em que completei quarenta anos, na última quarta-feira, 3, mas como já previa que acontecesse, meu trabalho, prazeroso e absorvente em igual proporção, não mo autorizou. Já ia me ocorrendo dizer que fora até melhor, uma vez que passado um tríduo, a poeira dos sentimentos já teria assentado e eu poderia fazer um balanço sincero e desapaixonado do que foi minha vida até aqui, do que está sendo minha vida até aqui. Bem, sincero tento ser mesmo fazendo a lista do supermercado; já desapaixonado, de antemão ressalvo que será muito improvável, uma vez que só de pensar nas rasteiras que a vida me deu — e que levou de volta —, como se estivéssemos os dois num baile de dançarinos rancorosos e meio cansados um do outro, me vêm à roda do pensamento um milhão de lembranças por segundo, as lágrimas se me avolumam nas raias dos olhos e sinto-me o mais desgraçado e o mais venturoso dos homens.
Para lançar do surradíssimo clichê, tanto mais para mim, passa um filme pela minha cabeça quando penso no assunto. Um filme cuja fotografia não tem apuro estético algum: ora puxa para os marrons e beges de um sépia que me remete à pré-história de minha vida, no Colégio Madre Carmen Sallés de uma Brasília já morta, com colegas que nunca mais verei, e vai ganhando cores, ganhando nitidez, entra pela adolescência confusa no semi-internato no Colégio Militar da outrora Capital da Esperança, passa pelo Colégio Dom Bosco e desemboca no CEUB, onde cursei essa cátedra quase ficcional chamada jornalismo. Em todos esses momentos perpassa a memória do Guará, o bairro operário onde cresci, e comecei a aparecer, para despeito de muita gente. Esse caráter eminentemente povão do Guará, que reste claro, foi muito mais no começo da década de 1980; a partir de meados dos anos 2000, o fenômeno global da gentrificação o deixou com a mesma cara de qualquer lugar entre o bom e o nem tanto, como uma dondoca nova-rica que vai fazendo uma recauchutagem aqui, outra acolá, e termina se parecendo com a filha mais nova depois de uma noite maldormida. Perdoem o bairrismo, sempre necessário para introduzir temas universais.
Continuo a reconhecer o menino frágil e indefeso que fui por um tempo estendido além do razoável, lutando contra fantasmas de rejeição, de perdas, de mágoas que se tornaram demônios ferozes. Faço questão de mantê-lo muito vivo em mim porque hoje sei que ele foi quem me amou primeiro, antes de qualquer outra, antes de mim mesmo. É pela sua figura para sempre tão cheia de vida, de pureza, de um amor pela humanidade que, felizmente, pude conservar que periodicamente viajo para o mundo encantado da infância, esse lugarzinho acolhedor e mágico para onde vamos todos quando queremos algum consolo frente à acrimônia da vida. Sinto que, nessa quadra da minha existência em que flor da juventude vai sendo privada de seu viço, aquele menino começa a perder espaço para o velho que um dia pretendo ser, o ancião de dez mil anos que sempre habitou em mim, como naquela canção do Raul. Com a chegada dos quarenta anos, sinto-me como se de volta a um lugar que sempre me fora caro, mas que nunca havia conhecido até então. Sinto-me, verdadeiramente, em casa.
É um grande privilégio ter podido conseguir vencer medos que pensei que me dominariam para sempre, ter dado a volta por cima aos cinquenta do segundo tempo e ter sido capaz de encaminhar minha vida da maneira que eu sempre quis, poder tocar os projetos que me toda a vida me calaram fundo, sentir afinal o gosto doce de estar realizando coisas que julgo grandiosas e que hão de testemunhar que minha vinda a este mundo não foi debalde. Exercer o ofício para o qual me preparo desde que me conheço por gente, com toda a devoção, como o padeiro madrugador encarniçado à massa, como já disse algumas vezes, até encontrar o ponto do biscoito fino com que deleita paladares refinados, do pão com que mata a fome do homem simples antes do trabalho. Sou esse operário, um operário das palavras que aspira à saciedade do espírito, seu e dos outros. Ter tido a chance de alcançar esse ponto da minha vida, depois de uma fase de fato tenebrosa, de desespero, de necessidade, de maldição, de morte foi o presente com que a vida me agradou, pouco antes dos quarenta. Em continuando tudo rigorosamente assim, não me sinto no direito de pedir qualquer outra coisa que não seja… que tudo continue rigorosamente assim.
Faço dessa crônica uma carta aberta a Deus, à vida, à sorte, ao destino, que divido com vocês, amáveis leitoras, amigáveis leitores, sempre carinhosos, generosos, sensíveis, humanistas incorrigíveis com que tenho travado um contato às vezes um tanto breve, mas sempre revelador. Que nossa conexão siga sempre assim tão bem azeitada, tão sincera e tão cheia de calor. Felizmente não consigo agradecê-lo um por um, uma vez que a audiência bate recordes para mim inestimáveis. Não sei se algum dia terei uma dimensão cartesiana do que é ser lido por um milhão de pessoas, como já chegou a acontecer; sei o que é ser lido por alguém que procura boas recomendações de filmes e livros e me mandam mensagens comoventes, me agradecendo por um texto que mudou sua visão de mundo. Aprendo muito com esse retorno. Também me aprimoro com ele, e penso que se consigo mesmo fazer com que uma pessoa se renove, esses quarenta anos de vida, cheios de altos e baixos como convém viver, têm sido inestimavelmente valiosos.
Sou como Ivan Ílitch, o protagonista do conto de Tolstói, provocando alteração mesmo depois de minha morte — que espero ainda bem distante. Sinto que, ao longo de quatro décadas sob o sol, tenho vivido muitas vidas numa só jornada, superado traumas e transformado tudo em alguma sabedoria. Que Deus conserve.