Homens do século 21 estamos perdidos. Mal-acostumados por anos de desmandos sobre mulheres outrora de todo dependentes de nossos auspícios, não conseguimos nos desapegar desse status de dominação, de excessos, sobre indivíduos que deveriam ser parte de um projeto de vida em comum, mas que viram meros apêndices de nossa covardia, renunciam a sua própria vida, a sua própria natureza e se conformam com o papel subalterno de estar sempre a prestar alguma assistência, em tudo; que subvertem-se numa espécie de híbrido entre besta e máquina sem despertar a compaixão desejável e redentora quanto à primeira e longe da eficiência que livra esta de reparos constantes. Uma professora de arte, simples, mas sofisticada; amargurada, mas ainda doce em essência, continua a sonhar seus sonhos de juventude enquanto tenta se moldar a um marido infantilizado, abrutalhado, pré-histórico, sem alcançar nenhuma conclusão quanto a ter tomado a decisão certa ao abdicar do que poderia ter sido para se transformar no que é, no que talvez nunca mais deixe de ser, encasulada no paraíso cinzento da vida doméstica.
Pelo que se depreende de sua estreia em longas-metragens, o taiwanês CJ Wang parece ter pela frente uma estrada cheia de ótimos trabalhos como cineasta. Destaque no New York Asian Film Festival, premiação responsável por divulgar a cultura asiática nos Estados Unidos, “Meu Lugar” (2022) tem fôlego interminável em mais de duas horas ao tentar entender o drama de sua personagem central, essa mulher comum, que alimenta sonhos ou ilusões, mas que não consegue deixar a prisão de uma vida perigosamente cômoda. O diretor opta por cenários, diálogos, figurinos os mais orgânicos a fim de imprimir a seu filme todo o naturalismo que logo se torna o grande chamariz para a história. Já nos primeiros dos 123 minutos, o espectador compreende que nunca carregar nas tintas, muito mais que um recurso estilístico que aproxima plateia e elenco, ao contrário, do que se poderia supor, permite à narrativa contornar o tédio e capturar o interesse do público da maneira mais legítima, justamente por localizá-lo no centro da ação, límpida, fluida, concatenando cada nova ideia de modo a dar à trama o espaço de que necessita para crescer, sem estrangular o que apresentara até então.
Essa mulher cansada, cuja angústia se projeta para além de sua figura delicada, que poderia denotar apenas a fragilidade de uma mulher franzina caminhando a passos resolutos para a velhice, é a senhora Yeh, a professora de arte aposentada de Nina Paw. À medida que a história avança, se sabe que essa senhora Yeh, sem direito sequer a um nome só seu, chamada assim até pela própria filha, vivida por Chia-Yen Ko, tinha vontade de sair pelo mundo, mas se soube grávida, o que justificou correr com os preparativos para o casamento com o personagem de Johnny Kou, aposentado e dando asas ainda mais vastas à personalidade castradora e absorvente com que sempre se posicionou na relação. Wang tem a competência e a sensibilidade necessárias para deixar evidente o mal-estar da senhora Yeh sem ao menos subir o tom de voz, nem dela nem ator nenhum em cena. É impossível não se compadecer de alguém que, mesmo cercado por ameaças de toda ordem, não grita.
Mais do que condoído, quem assiste fica mesmo revoltado com as recorrentes manifestações de desprezo dos algozes em que o marido e a família vão se metamorfoseando, quiçá sem se dar conta, uma vez que a senhora Yeh alimenta o monstro de indiferença e parasitismo que habita neles. Se por um lado o marido se assemelha mais a um paxá, exigindo a camisa limpa, a comida sempre fresca, a casa em ordem, refestelado na poltrona vistosa que se presta a seu trono, a personagem de Ko volta a morar com o casal depois de pedir demissão do emprego visando a empreitadas maiores que seu horizonte, sem nunca cogitar a necessidade de antes discutir o assunto. Numa das sequências mais simbólicas do roteiro, Wang coloca sua heroína se esforçando por resolver um problema quanto ao novo apartamento que desejam comprar, a fim de que a mãe da senhora Yeh, a nonagenária interpretada por Chia-An Yu, ao passo que, sozinho, o marido mal consegue fritar um ovo e volta com o lixo que havia saído para descartar porque não sabia que era preciso separar os dejetos orgânicos do resto.
Mais uma vez o cinema asiático levanta as discussões mais urgentes da maneira como o faz melhor: sem alarde. Com todo o respeito, o New York Asian Film Festival é muito pouco para trabalhos desse gabarito.
Filme: Meu Lugar
Direção: CJ Wang
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 10/10