Um dos mais belos filmes do cinema recente está na Netflix e vai mudar sua forma de enxergar a vida Divulgação / Applause Entertainment

Um dos mais belos filmes do cinema recente está na Netflix e vai mudar sua forma de enxergar a vida

Em 1936, o diretor japonês Yasujiro Ozu (1903-1963) já mostrava do que é capaz alguém que, mesmo com poucos recursos, se determina e faz o que quer fazer, o que tem de ser feito.

“Filho Único”, primeiro trabalho de Ozu em que os personagens ganham voz — todos os filmes anteriores do cineasta eram mudos —, trata de um tema caro à cultura oriental: a família, quão excruciante pode ser a aventura de se criar filhos (e a trama se passa no começo do século 20). O subemprego, a remuneração insuficiente para suprir ainda que só um pouco além do que a necessidade básica do alimento, a pobreza severa, vem à lume por meio de uma mãe solteira, funcionária de uma tecelagem de seda, que dá seu viço, sua juventude, seus melhores anos, em nome do filho, para que ele consiga se dedicar somente aos estudos e, destarte, tenha a oportunidade que a vida lhe negou.

Vencer na vida é um conceito precioso àquele povo. Não é exatamente ter dinheiro para que se dê azo aos mais tresloucados desejos de consumo — estilo de vida que passou a ser exageradamente valorizado também por eles, em especial depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ao longo da qual todo o planeta fora obrigado a enfrentar sérias dificuldades de abastecimento, cenário que se apresentou de maneira ainda mais agravada para o Japão, devido ao lançamento de bombas atômicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, em 6 e 9 de agosto do ano final do conflito — nem a ocupar postos de chefia nas multinacionais e startups que se encantam com a filosofia de fazer o máximo com o mínimo, tudo se dando sob disciplina estrita. Durante várias passagens da trama de Ozu, se depreende que a mãe igualmente se preocupa com a maneira pela qual Ryosuke, o filho único do título, vai optar a fim de ter sua chance.

Passados mais de 80 anos, uma espécie de obsessão por exaltar a virtude, malgrado as circunstâncias sejam as mais desfavoráveis, permanece no cinema produzido naquelas terras distantes, filosofia também muito distante da que se emprega no modus vivendi do atrasado oeste, principalmente mais ao sul do globo — até porque, para quem levou dois milênios, entre idas e vindas, para construir uma muralha, oito décadas não são grande coisa. “A Sun”, lançado em 2019 e dirigido por Chung Mong-hong, um chinês de Taiwan, território que se emancipou unilateralmente da metrópole também nos estertores da Segunda Guerra, confirma a tendência moralista, no melhor sentido do termo, e faz muito mais, justamente por contar com muito mais dinheiro, material humano e, por óbvio, tecnologia que Yasujiro Ozu, o que da mesma forma se pode observar no sul-coreano “Parasita”, de 2019, dirigido por Bong Joon-ho, e “Assunto de Família”,  lançado em 2018, de Hirokazu Kore-eda, japonês.

A despeito de se tratar de quatro enredos com características tipicamente voltadas à visão de mundo sob a perspectiva do Oriente, os realizadores, todos orientais, tem cada um o seu jeito todo próprio de partir de um leitmotiv e conduzir o roteiro. Por sua história de rompimento com a China em busca de independência, liberdade e, o essencial, democracia, o taiwanês se parece muito mais com Hollywood do que com o que é feito no país que lhe deu origem, e, para fins de se preservar a honestidade intelectual, há que se dizer que produções genuinamente nacionais numa China despótica são raras — e também por essa razão Chung Mong-hong leva a melhor sobre seus colegas contemporâneos: viver numa nação que, passadas mais de sete décadas, ostenta a situação um tanto esquizofrênica de ser autônoma, mas não poder ocupar assento na Organização das Nações Unidas (ONU) por causa, entre outros motivos, da submissão de parceiros comerciais da China, certamente tem suas vantagens sob o prisma da criação artística. Chung é um diretor habilidoso que, sem prejuízo da sensibilidade, mantém o filme leve, fluido, sedutor, ainda que a história pouco tenha de sutil.

“A Sun” começa de maneira brusca e, assim, o espectador já fica esperto quanto ao que pode esperar do drama taiwanês do diretor Chung Mong-hong. Mas que ninguém se desestimule: o enredo é todo permeado por respiros cômicos — e eles são mesmo necessários. A pobreza, ainda que num país rico, é implacável, e ai daquele que pense que pode subverter o estabelecido. Contudo, seria tolo afirmar que o risco social é o responsável por fomentar a criminalidade; o fato é que a alma de todo homem tem sua face sombria — e cada um deve mantê-la sob controle. E controle — e, por extensão, autocontrole —, é outra ideia muito valorizada pelos orientais. Um pai de família honrado não se prestaria a aturar os deslizes de caráter por parte de um filho, muito menos suas delinquências. Ao tomar conhecimento da prisão de A-Ho, A-Wen exige que o caçula seja sentenciado com uma pena dura, o que revolta sua mulher, Qin, mãe do rapaz. A partir daí, o que se segue é a total desintegração do que até tão pouco tempo atrás era um lar (e uma família). Ainda que haja uma ou outra tentativa pontual de contornar a questão, o casal, juntamente com o filho mais velho, pressente que nada vai voltar ao ponto anterior à ruptura. A vergonha que todos sentem pelo destino de A-Ho, tornado ainda mais significativo numa sociedade que valoriza sobremaneira a austeridade da conduta social, o constrangimento, o remorso, tudo converge para que não consigam se encontrar outra vez.

Ao longo de mais de duas horas e meia, a narrativa oscila entre o drama do clã liderado por A-Wen e o suspense policial, o que confere ao trabalho de Chung um caráter antropológico, na medida em que se empenha em desvendar o verdadeiro sentimento que o instrutor de autoescola tem pelo filho morto e por aquele que resta vivo, trocados de posição por um capricho do fado. Se antes A-Wen dizia que era pai de um só dos rapazes, porque considerava o outro, o condenado, o presidiário, o opróbrio da família, perdido para sempre, morto, passa a ter de se confrontar com a necessidade de rever sua resolução, já que seu favorito se foi de alma e corpo numa tragédia pessoal de natureza igualmente avassaladora — ou ainda mais.

A genialidade de Chung Mong-hong em “A Sun” ensina que, de fato, o sol pode ser o que há de mais justo no mundo, mas só pode iluminar e emprestar seu calor a ambientes que se abram para ele. Corremos o risco todos, orientais ou não, de ficarmos para sempre retidos no torvelinho de covardia, ignomínia e misérias pessoais que varre a existência do homem de tempos em tempos desde sempre, maldição para a qual a única cura ainda é o gasto e redentor livre-arbítrio.