Surpreendente, filme da Netflix vai te abrir os olhos e despertar emoções que você nem sabia que existiam David Lee / Netflix

Surpreendente, filme da Netflix vai te abrir os olhos e despertar emoções que você nem sabia que existiam

Verificar que uma história especialmente complexa, rica, se adapta com relativa facilidade a diferentes meios tem um gosto fora do comum para a audiência, cuja expectativa acerca da magnitude do que será narrado aumenta sobremaneira. Assuntos espinhosos, delicados, particularmente densos ou que remontam a uma capacidade quase metafísica de colocar-se no lugar do outro, que nem todos têm, podem ficar mais ou menos apetecíveis ou intragáveis em maior ou menor proporção só por causa da maneira como são trabalhados, a depender do que se queira transmitir e da força que se deseje emprestar à mensagem. A despeito de quão urgente seja o tema, a verdade é que as questões verdadeiramente fulcrais ao desenvolvimento de uma sociedade pronunciam-se, seja na ribalta seja sob a natureza do cinema, ambas transformadoras cada uma a seu modo, procurando alcançar o público que opta por um ou outro ambiente, até que a importância do que está sendo dito seja tamanha que fique mesmo inviável apartar um veículo do outro e eles acabem por se fundir. O espectador agradece.

Sucesso na Broadway, “American Son” (2019), texto do dramaturgo e advogado branco Christopher Demos-Brown adaptado para às telas pelo diretor negro Kenny Leon, consegue se encaixar ao formato do cinema ao passo que não deixa de replicar na tela a mesma força vista nos palcos ao jogar luz sobre a cada dia mais intrincada questão racial nos Estados Unidos. É forçoso que a atmosfera claustrofóbica e sombria do cenário, o saguão de uma delegacia de polícia de Miami numa noite de chuva incessante, é muito mais estimulante para que as falas ganhem vida se projetando do contato direto do reduzido elenco com a plateia, mas o cinema, claro, sempre encontra um jeito de burlar essas dificuldades e mesmo fazer delas uma carta na manga. Leon escolhe a fotografia de Kramer Morgenthau, intencionalmente pesada, tenebrosa, marcada por uma paleta com predomínio de marrons, cinzas e verde musgo, a fim de assinalar o tormento a que os protagonistas estão prestes a ser sujeitados. Minudências apagam do inconsciente de quem assiste a sensação de teatro filmado, tão incômoda justamente porque não chega nem perto da profundidade técnica do cinema e tampouco têm o frescor da representação teatral. 

O conflito de “American Son” pode ser facilmente absorvido por espectadores de todos os matizes sociais, mormente em países que como os Estados Unidos e o Brasil, em que pese o avanço dos anos, se revelam incapazes, de mãos atadas, quanto a dar algum fecho ao opróbrio da discriminação por motivo étnico, sendo que por aqui o propalado (e verídico) mito da democracia racial muito mais atrapalha que ajuda ao tragar a necessidade da discussão para debaixo do tapete. Na delegacia, esperando por notícias do filho, Jamal, de 18 anos recém-completados, está Kendra Ellis-Connor, de Kerry Washington. O roteiro de Demos-Brown acrescenta a informação de que os dois haviam discutido antes do desaparecimento do rapaz, pouco útil para as investigações sobre o paradeiro dele, mas fundamentais para que se vá conseguindo apreender o nível de tensão e a escalada de agonia dessa mãe, que sente literalmente na pele os efeitos nada suaves de ser a minoria. A personagem de Washington, uma professora universitária negra, já havia telefonado para o pai do garoto, de quem parece estar se separando — a incerteza quanto à situação é um dos poucos ruídos no enredo — e enquanto Scott Connor, o agente do FBI vivido por Steven Pasquale não chega, perde-se em alterações com Paul Larkin, o tira inexperiente de Jeremy Jordan, tolas, mas sempre cheias de insinuações racialistas.

Só quando Scott finalmente aparece é que o caso se desanuvia até o desfecho trágico anunciado pelo tenente John Stokes, interpretado por Eugene Lee, negro como Kendra. Scott, um homem branco, sofisticado e com dinheiro o bastante para dar um carro de luxo como presente de aniversário pela maioridade do filho único, encarna a figura do salvador branco — parcialmente, já que mesmo toda sua influência não conta para que se reverta a sorte de Jamal. O encerramento defendido por Leon reforça a tese do caos institucional no que se refere ao merecido combate do problema exposto, que com ajustes pontuais, se desdobra também no Brasil. Com sinal trocado e pelos motivos opostos.


Filme: American Son
Direção: Kenny Leon
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Policial
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.