Um homem com um dom bastante especial para negócios nada comuns se lança a empreitadas cada vez mais audaciosas, até que, como sói acontecer, o inesperado o colhe de maneira acachapante. Uma história absurda puxa a outra, e quando se vai ver, acontecimentos que deveriam pairar muito acima do leito ordinário da narrativa tornam-se a regra, capturando o espectador e transportando-o para um mundo quase onírico, em que a dificuldade de se distinguir o concreto do sonho torna-se cada vez mais inescapável na onipresença sufocante que a tudo cerca e faz tudo parecer assombrosamente misterioso. Histórias como essas têm por maior trunfo preservar-se enigmas que sugerem uma possível decifração por meio da força de outras tramas igualmente obscuras, até que se erija um mosaico de elementos que, afinal, principiam a convergir e a apontar para um encadeamento lógico. Aos poucos, vai-se chegando mais e mais perto do que o filme pretende dizer, e quanto mais esse ponto se aproxima maior é a surpresa quanto a sua gravidade. E esse também é o objeto exato que o enredo quer enquadrar.
Aparentando a frieza que tão bem caracteriza seu temperamento, o protagonista de “Acidente” (2009), do honconguês Cheang Pou-soi, tenta corrigir seu engano, instante em que o argumento central do longa começa a despontar. O trabalho do diretor, uma refinada comédia de humor negro, teoriza sobre até que ponto esse sujeito estranho pode ir para manter-se no topo, acima do bem e do mal. Cheang, cineasta tão talentoso quanto ignorado, passou a trilhar uma carreira de rápida ascensão depois da estreia de “Acidente”, que contou com a produção esmerada de Johnnie To, por seu turno um diretor cuja trajetória também começava a se projetar com mais forca, até o lançamento de “Life Without Principle” (2011), que o catapultou ao estrelato de uma vez por todas. Tanto num como no outro caso, o vigor de ambas as histórias reside no jeito sutil, algo dissimulado, dos dois diretores lidarem com assassinos, mortes e os eventos funestos que os interrelacionam entre si; tanto num como no outro caso, o que se verifica é a força do inesperado, sempre à espreita, pronto para dar o bote e mudar a vida de uma pessoa como outra qualquer.
Sujeito excepcionalmente meticuloso, Ho Kwok-fai, também chamado de Brain, “cérebro”, é o cabeça de uma gangue de estelionatários cuja especialidade é simular o que definem por acidentes, mas que na verdade são homicídios detalhadamente planejados com o intuito de arrancar gordas indenizações de seguradoras e bancos. Vivido por Louis Koo, esse rato magro, mas expedito, move-se com destreza pelas ruas de Hong Kong, apresentando seus assassinos ao cenário em que irão atuar, tudo com a discrição que é parte de sua natureza. Cheang tem o condão de dar a essas passagens o tom de bem medida comicidade, adicionando os elementos de suspense que metamorfoseiam o roteiro de Kam-yuen Szeto e Lik-kei Tang em outra coisa que não só o mero thriller psicológico — e o crescendo de sequências que assumem sua aura cruenta, com o sangue vermelho-groselha nitidamente pegajoso da fotografia de Yuen Man Fung não têm muito a dizer nesse particular. Aqui, o que importa mesmo é a maneira como o diretor se aproveita de todos os detalhes que, aos poucos, convergem e se avultam, até que o enredo sinalize para onde vai, sem as outras voltas que a partir de então seriam desnecessárias.
Uma trapalhada de Brain assinala a guinada para o segundo ato, quando o personagem de Koo torna-se cada vez mais vulnerável, a ponto de não conseguir mais escapar das próprias armadilhas e tampouco saber quem são seus poucos aliados e aqueles francamente dispostos a dar cabo de sua figura abjeta, que não vai fazer falta a ninguém. Dentre esses, o empresário Fong, de Richie Jen, é o homem em quem tem de prestar mais atenção. A perseguição de um gato gordo a um rato outrora feroz, mas agora assustadiço, passa a ser a graça de “Acidente”, formulaico, mas certeiro.
Filme: Acidente
Direção: Cheang Pou-soi
Ano: 2009
Gêneros: Thriller/Ação
Nota: 8/10