Todo mundo se lembra em detalhes de dias em que acontecimentos trágicos balançam a desejável monotonia do cotidiano e se instalam na sala de milhões de pessoas. Eu cursava o último ano e estava voltando da escola quando dos ataques às torres gêmeas do World Trade Center, em Manhattan, coração de Nova York, em 11 de setembro de 2001, noticiados pelo rádio. Cerca de doze anos depois, no dia 27 de janeiro de 2013, me preparava para encontrar amigos num pub no momento em que soube, pela internet, que um incêndio consumia a boate Kiss, em Santa Maria, uma cidadezinha no centro do Rio Grande do Sul; o saldo macabro da catástrofe seriam 242 mortos e 636 feridos, entre os quais bombeiros e gente que se voluntariou a resgatar quem não conseguia deixar o prédio. Além dessas, poderia citar mais uma fieira de desgraças que brotam ou da loucura de fanáticos ou da desídia das autoridades, em que a atuação de pessoas comuns é fundamental para a contenção de danos ainda maiores, e que mais uma vez, faz cair por terra a célebre (e tola) frase de Brecht sobre a pretensa desdita de um povo por necessitar de heróis. Todos precisamos de heróis; de mártires é que ninguém deveria precisar.
Se eu fosse indiano, como Sashi Kiran Tikka, também teria lembranças sobre 26 de novembro de 2008. Nesse dia, Bombaim, centro financeiro e maior cidade da Índia, viveu uma série de dez atentados. Tikka fala de um dos ataques civis mais sangrentos da história recente do país sob a perspectiva de um homem invulgar, que cumpriu sua nobre tarefa de salvar vidas e sofreu o mais injusto dos castigos, sem tempo para tão humanos medos. Sandeep Unnikrishnan, de 31 anos, oficial formado pela prestigiosa Academia de Defesa Nacional (NDA, na sigla em inglês) e membro da Guarda de Segurança Nacional (NSG), foi uma das 195 pessoas que tombaram pelas mãos de extremistas islâmicos que não se conformavam com a possibilidade de vida e dignidade para além do ajuntamento de sandices que entendem como os preceitos de Mohammed, o profeta da religião islâmica, métodos repelidos com veemência pelos próceres muçulmanos sempre que um fato dessa natureza se desenrola em qualquer parte do mundo.
“Major” (2022), a visão de Tikka para os eventos combatidos por Unnikrishnan — disponível em telugo, um dos 22 idiomas falados na Índia, predominante na porção centro-sul do país; a outra, em hindi, recebe o nome de “Major Sandeep” — se presta a um registro hagiográfico da vida de seu biografado, muito a propósito do que se assiste nessas produções (e no caso das indianas, a carga de devoção é assumidamente redobrada). Não há margem para que se deslindem falhas por menores que sejam, possíveis desvios de personalidade, respostas atravessadas a subalternos, nada: Sandeep Unnikrishnan tornou-se para os indianos, com o providencial empurrãozinho do diretor, mais que um santo, quiçá até mesmo um novo messias, pronto a regressar do além-mundo quando for a hora, salvar os puros e despedir os ímpios para a danação eterna, sem lero-lero.
A interpretação de Adivi Shesh para o personagem-título encarna bem a noção de, mais que exaltar, glorificar a figura de Unnikrishnan. Shesh, o roteirista de “Major”, recorre a todos os clichês de Bollywood, inclusive os cada vez mais detestáveis musicais, a fim de narrar a vida do protagonista, das pequenas aventuras nos quintais de vizinhos, protegidos por cãezinhos que pareciam dragões de sete cabeças, ao processo de formação na NDA — momentos de rara humanidade do aspirante ao oficialato, em que se empenha nas aulas de defesa pessoal, rasteja na lama nos exercícios de resistência e aguarda na fila para telefonar para a mãe, Dhanalakshmi, vivida por Revathi —, passando, claro, pelo namoro e posterior casamento com a personagem de Saiee Manjrekar, com quem convivia desde menino. O enfrentamento corpo a corpo com Ali, o terrorista interpretado por Rocky Gondle, instante em que se prenuncia a desdita de Unnikrishnan, recompensa a espera pelo devido nível de tensão num filme desse diapasão, também pela delicadeza com que Tikka elabora o caótico fluxo de consciência do major. Sua conversa sobrenatural com o pai, de Prakash Raj, emociona pela simplicidade dramatúrgica, o que volta a acontecer no segmento final, com o previsível (e tocante) discurso de um pai que perde seu filho — ainda que o país ganhe um salvador. Morto.
Sandeep Unnikrishnan recebeu postumamente o Ashok Chakra, a maior honraria militar em tempos de paz, por sua coragem. Seu exemplo, como se nota, é lembrado e reconhecido, malgrado com certos exageros.
Filme: Major
Direção: Sashi Kiran Tikka
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Drama
Nota: 8/10