Filme com Jude Law e Charlie Hunnam na Netflix vai te assegurar 126 minutos de beleza e diversão Divulgação / Warner Bros.

Filme com Jude Law e Charlie Hunnam na Netflix vai te assegurar 126 minutos de beleza e diversão

Não é de hoje que a humanidade precisa de heróis. Uma história de mais de 1.500 anos, num mundo totalmente obscuro para os padrões contemporâneos, resiste ao tempo graças à capacidade de falar ao lado mais lírico da alma humana, o da aspiração por uma vida melhor. Trafegar entre o sonho e a realidade não é problema quando se trata de corresponder às expectativas de boa parte do público, muito pelo contrário; a natureza híbrida do que se assiste faz é açular ainda mais a curiosidade do espectador, a ponto de que levá-lo a pensar que o real e o sonho, o concreto e o imaginário trocam de lugar sem pejo algum, e, na verdade, é justamente o que acontece, sem o menor prejuízo da tal da verossimilhança. Tem coisa que existe só para desafiar a vã razão do homem, perdido em meio a toda a loucura do existir, nos detalhes mais ínfimos. No momento em que algo o captura e o transporta para além do dia a dia reles, sem graça, sem brilho, sem vida, ele se rende de bom grado, ansiando por se surpreender mais e mais. A carência do homem comum por fantasia é um seu lado que lhe exigem que sufoque, mas que não deixa de se manifestar de todo. Ao menor sinal de que o espírito se aprisionou numa redoma de cristal, insensível ao delírio, o gênero humano clama por beleza. E o cinema o atende.

Guy Ritchie sabe muito bem como acordar essa fome por sonho do público; é exatamente isso o que faz em “Rei Arthur — A Lenda da Espada” (2016) ao falar de um homem que ludibria seu destino trágico e entra para a história. Ritchie, um dos diretores mais desabotoados de Hollywood, escolheu um protagonista à altura de sua descontração; chega a ser divertido apenas imaginar o próximo lance de “Rei Arthur”, um filme pródigo em movimento, ágil, confessadamente absurdo em muitas ocasiões e que valoriza como poucos a cumplicidade com a plateia, que embarca satisfeita na insânia proposta pelo diretor. Filmes assim têm se tornado sua marca registrada desde o lançamento do psicodélico “Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes” (1998), em que elevou o cinema gonzo ao estado da arte ao retratar a agonia de quatro vigaristas dados a espertos após um golpe mal calculado. Essa leveza de Ritchie mesmo quando tudo o que se sucede na tela discrepa muito de um final feliz — ou precisamente por isso — é o que confere alma a seu trabalho, uma ode ao que há de mais lúdico no ofício de fazer filmes.

Nada mais adequado a uma personalidade como a de Guy Ritchie que encampar a cinebiografia de um tipo cuja contradição principia na falta de evidências de que tenha existido de fato. Ritchie apresenta Arthur como um órfão crescido entre meretrizes num bordel depois que os pais são mortos por Vortigern, o tio interpretado por Jude Law. Encarnando a corrupção de um sistema de governo despótico, putrefato, comprometido com tudo o que pode haver de mais monstruoso na natureza do homem, o personagem de Law aparece trocando impressões com as assustadoras ninfas que habitam o lago de uma gruta, metáfora mais que elucidativa sobre a maldade sistêmica do reino de Camelot. Ao se tornar adulto, Arthur assume o corpo e a verve de Charlie Hunnam, num empolgante processo de amadurecimento profissional, malgrado continue a sobressair-se em papéis cujo desempenho físico ainda seja fundamental — parece que Hunnam tem girado essa chave com mais ímpeto a partir de “Terra Selvagem” (2019), levado à tela por Max Winkler, em que experimenta um híbrido de ação e violência e drama ao dar vida a um brucutu que explora o irmão caçula no submundo do boxe amador. O que se vê na sequência é, em boa parte, o que o senso comum sabe da história, cuja porção mitológica Ritchie faz questão de negligenciar muitas vezes, insinuando que seu roteiro, coescrito com Lionel Wigram e Joby Harold, se baseie em fatos verificados na História, o que ninguém nunca pôde afirmar: Arthur é desafiado a retirar da pedra a espada que legitima quem o fizer como o mandatário supremo da cidade-estado. Ele atinge tal façanha sem muita dificuldade, e a trabalho de então sua sorte vira, não exatamente para a melhor (ao menos não em todas as circunstâncias).

Essas misturas de narrativas históricas com especulações ficcionais entre o apelativo e o genial pululam no cinema, e em tendo cunho religioso tanto melhor, conforme se observa em trabalhos do Monty Python e no escandaloso (para a época) “Je Vous Salue, Marie” (1985), de Jean-Luc Godard, censurado pelo governo José Sarney (1985-1990). No caso de “Rei Arthur — A Lenda da Espada”, Guy Ritchie declina de qualquer inclinação para a polêmica e prefere deixar de lado a suposta relação de seu personagem central com a feiticeira de Astrid Berges-Frisbey — que decerto é Guinevere, mas seu nome não é nunca mencionado. No mais, o saldo é extremamente positivo, mérito quase integral de Hunnam, já que o tirano de Law é tragado pela bruma das mais de duas horas de projeção e o mouro Bedivere, de Djimon Hounsou, lamentavelmente não emplaca. Diverte, é o que importa — se você não for um preciosista por detalhes históricos que se rendem à necessidade de defender mensagens mais afetas ao marketing.


Filme: Rei Arthur — A Lenda da Espada
Direção: Guy Ritchie
Ano: 2017
Gêneros: Fantasia/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.