Filme com Idris Elba e Caleb McLaughlin na Netflix vai te fazer ganhar o dia Jessica Kourkounis / Netflix

Filme com Idris Elba e Caleb McLaughlin na Netflix vai te fazer ganhar o dia

Caubóis negros podem até ser uma premissa algo exótica para grande parte do público, mesmo nos Estados Unidos, mas eles sempre estiveram lá. Ao longo dos séculos, os afro-americanos foram se submetendo às tantas metamorfoses que definiram o próprio desenvolvimento dos Estados Unidos, sendo capazes, no entanto, de conservar seu lado telúrico. Tomando a vida como uma grande celebração, esses sacerdotes da terra sempre souberam exatamente o que é preciso para fazer do talento em lidar com o lado mais primitivo da natureza uma qualidade prezada não só por seus beneficiários diretos, mas por toda uma nação, e por um prazo que se estende indeterminado ao longo do tempo. O problema é que, da mesma forma como também acontece em outros segmentos da sociedade na América, seu prestígio e mesmo sua presença foram gradualmente apagados da história, restando apenas a lembrança de uma época distante em que foram encarados sob a perspectiva dos grandes desbravadores que continuaram a ser, não obstante sua grandeza e mesmo o espaço físico que um dia ocuparam já fossem uma imagem pálida no horizonte da memória.

Os vaqueiros urbanos de “Alma de Cowboy” (2020), o western cheio de estilo de Ricky Staub, reocupam, afinal, o lugar que lhes é justo na história dos Estados Unidos por meio da trama sublime que se eleva a partir de um reencontro nada ansiado de pai e filho. Staub faz do filme um registro documental da importância dos afro-americanos no cenário rural do país, sobretudo no norte da Filadélfia no último século, valendo-se de membros da sociedade da Filadélfia, a maior cidade da Pensilvânia, no nordeste americano, recurso que em 2021 ajudou Chloé Zhao a arrebatar o Oscar de Melhor Filme por “Nomadland” (2020). Aos poucos, Fletcher Street Stables, uma pequena comunidade de campesinos, vai ganhando vida também na ficção do diretor, que se ampara no bem-cuidado roteiro, coescrito com Dan Walser. O texto se esmera por mostrar a independência daquelas pessoas, sua capacidade de empreender a despeito de incentivos do poder público, que nunca chegam — e essa parece ser a grande mensagem nas entrelinhas do longa —, sua resiliência diante das adversidades, ao passo que não se esquece de abordar, ainda que com menos vigor, a chaga do tráfico de drogas, presente também naquele pedaço de paraíso, singelo, mas precioso.

Em mais uma performance maiúscula, Idris Elba dá vida a Harp, um dos homens fortes de Fletcher Street. Durante um momento de descanso após a lida com os cavalos — que as tomadas intimistas de Staub fazem parecer deveras extenuante —, Harp, mesmo depois de algum tempo de separação, identifica o rosto de Coltrane, o filho que mora em Detroit. O desentendimento com a mãe, Amahle, de Liz Priestley, exposto na abertura, faz com que ela apenas ponha o garoto no carro, dirija até a Pensilvânia e o despeje lá, e ninguém é capaz de tachá-la de cruel ou negligente. Não demora até que Coltrane — assim chamado por escolha do pai para homenagear John Coltrane (1926-1967), embora prefira o apelido Cole, referência involuntária a outro gigante da música americana, Cole Porter (1891-1964) — se dê conta de que a nova vida está muito longe do que sonha para o futuro, malgrado sua trajetória no Michigan não tenha sido propriamente gloriosa.

Caleb McLaughlin rouba a cena, mesmo do assombrosamente carismático Elba, ou ao dividir o quadro com Lorraine Toussaint, que com sua Nessie proporciona o respiro cômico de uma história cuja tensão nunca explode em violência, mas se faz sentir. Staub não tenta reinventar a roda e não há muito sobre o que se deter aqui: Cole, por óbvio, se mostra ainda mais revoltado ao ter de viver com o pai, que de fato não está nada apto a recebê-lo. O pulo do gato da narrativa é a forma como o diretor refina os muitos conflitos que rondam a convivência forçada dos dois, com espaço também para Jack, o cavalo de Harp. “Alma de Cowboy” mistura a vida de um à do outro, filho e pai, mas estranhos entre si, até que consigam superar boa parte dos obstáculos que os segregam — e o que consola é perceber que os maiores são mesmo os que não dependem de seus esforços.


Filme: Alma de Cowboy
Direção: Ricky Staub
Ano: 2020
Gêneros: Faroeste/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.