O filme da Netflix que todo mundo deveria assistir para acalmar o espírito Hopper Stone / Netflix

O filme da Netflix que todo mundo deveria assistir para acalmar o espírito

Todas as experiências pelas quais passamos na vida nos ensinam alguma coisa. Especialmente as piores. Quanto mais nos apegamos a alguém, mais difícil é aceitar a ideia de que essa pessoa não vai voltar, nunca. Tanto mais complexa se torna essa despedida se a pessoa em questão ainda não era propriamente um indivíduo, mas já virara o centro das atenções justamente por sua importância. Em “Um Ninho Para Dois” (2021), dirigido por Theodore Melfi, o argumento do casal que perde um filho pouco depois do nascimento adquire tintas um pouco menos dramáticas do que o que se depreende de histórias semelhantes já apresentadas pelo cinema. No excelente “Pieces of a Woman” (2020), lançado um ano antes de “Um Ninho Para Dois”, o diretor húngaro Kornél Mundruczó carrega no tom funesto da narrativa, levada pelo talento inestimável da protagonista, a inglesa Vanessa Kirby. A produção de 2021 tem suas particularidades nesse campo, como o fato dos protagonistas já terem alcançado a meia-idade e, provavelmente, aquela tinha sido a oportunidade de ouro de conceberem um filho juntos — no caso, uma filha, da mesma forma que no filme defendido por Kirby. Em “Um Ninho Para Dois”, também se infringe uma espécie de cânone nesse subgênero e aqui é o homem quem acusa o golpe mais claramente. Jack, o marido, interpretado por Chris O’Dowd, aterrado pela tristeza, passa a abusar de psicotrópicos e tem de se submeter a uma reabilitação. Lilly, vivida por Melissa McCarthy, continua em casa, lidando sozinha com a dupla ausência enquanto planta uma horta que, ela espera, será cuidada pelos dois, como uma forma de terapia. O enredo assume teor que pende para o agridoce. É impossível se cogitar passar por cima da tristeza e da nostalgia por uma época dourada que parece enterrada com a bebê, mas o roteiro não se rende à austeridade do mote.

A morte da filha se desdobra em vários outros obstáculos para a continuação do relacionamento de Lilly e Jack. Ela apresenta dificuldades para se concentrar no trabalho, enquanto o companheiro segue internado e, no fundo, talvez não deseje voltar para casa. “Um Ninho Para Dois” não se propõe a levar à tela uma DR, a discussão do relacionamento entre os personagens centrais, e para não deixar seu filme resvalar no monocórdico, citando o passamento da criança a toda hora, Melfi os circunda de alguns coadjuvantes — mais do que se convencionou usar em histórias desse jaez, outra inovação —, e o comportamento nada usual deles também se constitui numa escolha quanto à maneira como se quer conduzir a trama.

Melissa McCarthy transita confortavelmente entre o drama e a comédia e, da mesma forma que Vanessa Kirby, é a grande responsável pelo interesse que o filme gradativamente desperta. A atriz caminha com destreza pelos momentos mais soturnos, mas quando recebe a competência de dar à história o respiro bem-humorado que esta prometia, se vale de sua vasta experiência em produções como “Missão Madrinha de Casamento” (2011) e “As Bem-Armadas” (2013), ambos dirigidos por de Paul Feig, e não faz feio. O trampolim para a exploração de situações cômicas em “Um Ninho Para Dois” se dá quando com a entrada em cena de um pequeno grande personagem, que foi reverenciado no título original do longa, “The Starling”. O estorninho que a intimida com seus rasantes, a fim de expulsá-la de seus domínios enquanto se dedica à horta, a faz procurar uma ajuda profissional bem inusitada. Aconselhada por uma funcionária da clínica onde o marido está internado, Lilly vai ao encontro de Larry Fine, um psiquiatra que mudara de ramo e hoje dá expediente como veterinário. Com sua visão de mundo bastante peculiar, o homônimo do humorista famoso pela série de comédia pastelão “Os Três Patetas”, que viveu entre 1902 e 1975 (homenagem muito merecida), lhe presta consultoria sobre como lidar com o vizinho intolerante, destilando seu ceticismo a respeito de seu antigo público, os seres humanos.

O uso do estorninho na narrativa se apresenta como uma metáfora certeira quanto a abordar a necessidade humana de aprender a lidar com situações inesperadas — e todo o cenário cruel que elas podem ocultar, mormente as que envolvem a família. À medida que a verdadeira guerra que trava com o passarinho avança, Lilly toma consciência de que a ave é quem tem razão: o bicho está apenas reagindo ao que considera uma agressão e, o principal, um aviltamento à sua prole. Não por acaso, só quando ela se convence de que está errada ao atacá-lo é que vai, aos poucos, atentando para a sucessão de evidências do marido quanto a sinalizar a inadequação dele a determinadas atitudes da mulher, negativas ou não. Jack já estava apresentando um quadro depressivo muito antes da morte da filha deles, mas ela não percebia.

“Um Ninho Para Dois” termina deixando margem para um possível reencontro espiritual de duas pessoas que se amavam, mas que, por algum motivo, se perderam uma da outra, rompimento que precisou de uma desgraça para fazer com que Jack e Lilly, afinal, renunciassem à prostração, ao comodismo, ao mundo falsamente encantado em que viviam, e encarassem a realidade, por mais áspera que fosse. Cogita-se uma sequência do filme quanto a se esclarecer o que de fato o casal de protagonistas resolveu para suas vidas, mas uma ilação pode-se fazer com toda a certeza. Os dois, cada qual a seu modo e absorvendo suas dores com maior ou menor facilidade, saberão que o amor só pode resistir se for capaz de superar o infortúnio mais aterrador. Talvez o pássaro da vida lhes visite outra vez.


Filme: Um Ninho Para Dois
Direção: Theodore Melfi
Ano: 2021
Gênero: Comédia/Drama
Nota: 9/10