Ao lado de Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger, Arthur Schopenhauer compõe a trindade nada santa da filosofia contemporânea. A obra de Schopenhauer talvez seja o ponto de interseção entre o pensamento nietzschiano e o de Heidegger. Ainda que grande parte de sua produção se comunique diretamente com a de Nietzsche e Heidegger, Schopenhauer tem uma maneira absolutamente original de ver a vida e o homem, sem todo o niilismo de Nietzsche — e alguém teria? — e tampouco a visão poética do colega de Messkirch. Os três tiveram trajetórias parecidas: Schopenhauer nasceu em um país com tradição em estimular e fomentar a educação formal, como é o caso da Alemanha dos outros dois; era igualmente um obcecado com o trabalho, primeiro como homem de negócios, carreira da qual acabou por abdicar, graças a uma herança paterna, e depois assumindo sua vocação acadêmica. Schopenhauer se aproximara da medicina, em 1809, migrara para a filosofia em 1811, e, quase mudara de vida outra vez, em 1813, quando quis se alistar nas tropas contra o avanço de Napoleão Bonaparte sobre os demais países da Europa, mas desistiu. Ninguém pode dizer o que teria sido de Schopenhauer na guerra, talvez tivesse se tornado um soldado de valor, pelo afinco com que se dedicava às causas em que cria. No mesmo ano, concluiu sua tese de doutorado em filosofia, “A Quadrúplice Raiz do Princípio de Razão”, em que discorre sobre os quatro componentes do que há de menos parcial no homem, o princípio da identidade; o da não contradição; o do terceiro excluído; e o da casualidade. A partir dela, cinco anos depois, vem à luz sua obra-prima, “O Mundo Como Vontade e Representação”, por meio da qual defendia a ideia da vida sob a forma de uma vontade de vida, isto é, a vida seria uma mera prospecção do homem acerca de seus desejos mais obscuros. O homem não sabe querer, pois ao querer já espalha destruição por todo lado, e, portanto, há que se negar toda vontade, mesmo (ou em especial) as que, aparentemente, possam induzir a supostas boas intenções. Com Arthur Schopenhauer como mentor, elaboramos uma listinha daquelas, com quatro filmes que tomam o conjunto de ensinamentos do mestre por guia.
O brilho do sucesso, da glória, não ofuscou Robert Eggers. Aclamado pela excelência de “A Bruxa” (2015), Eggers segue na trilha do terror soft e em “O Farol” arranca uma das muitas máscaras da loucura em dois personagens condenados a viver num inferno muito peculiar. O filme suscita o medo, o pânico até, mas para isso se vale de premissas sofisticadas, só vistas em produções dos mestres máximos do gênero. “O Farol” é um pesadelo, e tanto pior que não seja o de quem assiste ao longa, porque não se sabe ao certo quando se pode vislumbrar um fim para a cornucópia de imagens assombrosas que se veem na tela. Um ataque aos sentidos, nada se permite definir em “O Farol”, e é esse justamente o seu trunfo. Viver numa ilha na costa nordeste dos Estados Unidos, num tempo ainda mais obscuro que o nosso, deve ser o bastante para se tentar desvendar a insânia de seus protagonistas. Ir além pode ser uma viagem sem volta.
Tirada do livro “I Heard You Paint Houses” (2003), de Charles Brandt, investigador profissional que se debruçou sobre o crime organizado nos Estados Unidos, a história de “O Irlandês” desvenda o envolvimento de Frank Sheeran, um dos maiores mafiosos americanos entre os anos 1960 e 1970, no sumiço do líder sindical Jimmy Hoffa. O filme esmiúça a vida de crimes de Sheeran desde o começo, quando ele conhece Russel Bufalino, um dos gângsteres mais poderosos da Pensilvânia à época e se torna um pintor de casas, alusão ao sangue das pessoas que extermina ao respingar nas paredes, expressão que Brandt tomou por base ao batizar o livro. Conforme a trama se desenrola, o espectador acompanha a escalada do irlandês junto à quadrilha, sempre fiel a Bufalino, seu padrinho na vasta carreira de delinquências. Foi honrando a confiança que o chefão depositara nele que Sheeran pôde chegar tão longe, e em nome desse código de honra muito particular, comete as maiores baixezas, como matar Hoffa, outro homem-forte do submundo que também o tomara por protegido. Sheeran não resiste a uma ofensiva mais severa do FBI e cai, levando os peixes grandes todos consigo. Amarga alguns anos de cadeia e termina num asilo, onde o filme principia e acaba, recurso muito bem usado por Martin Scorsese, um mestre também em se valer da estratégia de comprimir e alongar o tempo a seu gosto, a fim de imprimir mais realismo aos enredos que defende. “O Irlandês” talvez seja a obra-máxima de Scorsese — até que venha a próxima.
Que atire a primeira pedra quem nunca se flagrou atormentado por crises de consciência, vindas à tona depois de anos de contas a ajustar com o passado. Graças às muitas ironias do destino, Mario, ex-viciado em heroína que perdeu o irmão para a droga, tem a oportunidade de se reencontrar com o homem que quase arruinou sua vida. Mas a própria vida já mudou bastante: Mario está muito mais interessado em cuidar da mulher, grávida do primeiro filho do casal, e administrar a carreira de enfermeiro-chefe num grande hospital especializado em idosos do que nos prazeres fugazes de outrora. E é nessas condições em que se reencontra com seu antigo algoz, um chefão do narcotráfico que ainda hoje estende seus tentáculos pelo mundo todo, enquanto, alquebrado por uma doença degenerativa, luta para sobreviver e morrer com alguma dignidade, chance que o irmão de Mario não teve. O enfermeiro é tomado de um desejo insano por vingança desde que sabe que o traficante, chamado por ele de Alcaide, vai se internar justo no asilo em que trabalha — em vez de ser assistido pelos filhos, igualmente bandidos, em casa —, como se fosse o próprio destino que os tivesse disposto tão perto. Em paralelo, Mario tem de lidar com o assédio da família do gângster, que não admite que o pai permaneça hospitalizado, temendo que os negócios (e o próprio patrimônio do clã mafioso) sofram algum prejuízo, e com a própria família, ainda por se constituir de todo. Ao apresentar um dilema existencial da maior relevância, o filme cresce, sempre pontuado pela excelente trilha de Maika Makovski, já faltando meia hora para o grand finale, um dos mais tristes — e brutais, e poéticos — do cinema. Exatamente como diz o título.
Amy Dunne simplesmente some no dia do seu quinto aniversário de casamento, deixando o marido Nick em desespero. Ele vai se descontrolando cada vez mais, abusa das mentiras que conta para a polícia a respeito da vida com a cônjuge e acaba se tornando o principal suspeito pelo desaparecimento. Sua irmã gêmea, Margo, se compadece dele e o ajuda. Enquanto tenta provar a sua inocência, Nick procura descobrir o que de fato aconteceu com Amy. “Garota Exemplar” corresponde às expectativas de um grande trabalho de David Fincher e, de lambuja, ainda fomenta uma discussão interessante sobre a vida a dois ao apresentar ao público um homem e uma mulher que já se amaram algum dia, mas se transformaram nas pessoas que outrora criticavam: o marido frio e a mulher neurótica.