Suspense na Netflix, baseado em clássico da literatura argentina, vai tirar seu fôlego Divulgação / Haddock Films

Suspense na Netflix, baseado em clássico da literatura argentina, vai tirar seu fôlego

Os habitantes de Altos de la Cascada, um bairro exclusivo de Buenos Aires, não têm maiores preocupações que aproveitar as piscinas aquecidas de casas portentosas, cercadas de jardins vistosos e câmeras de segurança atentas a qualquer movimentação estranha até que são confrontados com uma realidade difícil de ser explicada. Numa manhã aparentemente banal, três corpos surgem boiando na piscina de uma dessas casas, o que provoca escândalo entre os moradores, mas não a ponto de mudar por completo a rotina de usufruto e prazer que caracteriza a vida desses privilegiados. À medida que as investigações avançam, contudo, mais irrefutável se torna o argumento que defende que as mortes não têm nada de aleatórias, e se tal conclusão prosperar, esse microcosmo de glamour e requinte pode, afinal, ser levado por uma sucessão de decadência física e ruína moral, nódoa difícil de ser apagada, principalmente num momento de baixa do mercado imobiliário, quando a necessidade pode falar mais alto e qualquer oferta já depreciada sofreria um achatamento ainda mais aviltante, categórico quanto a definir a nova condição social de muita gente.

O thriller “Viúvas Sempre às Quintas”, do argentino Marcelo Piñeyro, envereda pelo mistério a fim de tecer uma bem urdida crítica social sobre a vida das elites em seu país, conjuntura que se perpetua no tempo, desde 2009, quando da estreia, até hoje, treze anos depois. Baseado no romance “As Viúvas das Quintas-feiras” (2005), de Claudia Piñeiro, publicado no Brasil pela editora Alfaguara, o filme de Piñeyro tem por norte um atributo que já se tornou uma das grandes marcas do cinema feito na Argentina: a capacidade de, a partir de situações eminentemente idiossincrásicas, falar a públicos os mais diversos, misturando ainda assuntos de foro íntimo ao que acontece no noticiário político e econômico nacional, sensibilidade em que outros diretores sul-americanos — sobretudo os brasileiros — deveriam se inspirar. Visionário, o filme começava a alertar, com toda a sutileza, para novas tormentas no horizonte já nebuloso do país, vítima de eventuais crises desde 2001, quando se entregou de vez a debacle que o sacudia desde 1998. No meio do caminho entre atraso institucional e um futuro que poderia ser menos obscuro a depender das providências urgentes a serem tomadas, o Congresso argentino sancionou a Lei 26.571, a Lei sobre a Democratização da Representação, Transparência e Equidade Eleitoral Política. Enquanto isso, as elites davam seus últimos suspiros.

Replicando uma imagem celebrizada por Billy Wilder (1906-2002) em “Crepúsculo dos Deuses” (1950), o roteiro do diretor, coescrito com a autora do livro em que se inspirara e Marcelo Figueras, analisa a vida de três casais de classe média, com destaque para Tano, o gerente de uma multinacional, vivido por Pablo Echarri, e Teresa, interpretada por Ana Celentano. Aos poucos aparecem também Ronnie, de Leonardo Sbaraglia, o estroina que vive sob os auspícios da mulher, Mavy, a corretora de imóveis de luxo de Gabriela Toscano; Martín e Lala, personagens de Ernesto Alterio e Gloria Carrá, talvez os mais assumidamente infelizes do grupo porque sempre se souberam inadequados um ao outro; e Gustavo, de Juan Diego Botto, e Carla, papel de Juana Viale, que se mudam para o Altos de la Cascada intentando fugir do tédio, mas tudo o que conseguem é tornar ainda mais evidentes suas diferenças. Piñeyro se vale de cada dupla e de cada tipo em especial para deslindar situações extremas em todo casamento, e pronunciadas com um vigor pontual no caso desses casais. Há adultérios consumados e os que adormecem no baú das vontades, seja para dar vazão à libido, seja para uma tola vingança, ou pior, para a autoafirmação de vaidades pueris; o desajuste com o espelho; os pequenos fracassos, como uma demissão que resta oculta por algum tempo; e o amor condenável de um cônjuge pelo membro de outro par. O diretor vai deslizando por essas questões com serenidade, de forma madura, até chegar ao mote central da trama, já no desfecho. É quando “Viúvas Sempre às Quintas” se mostra um filme verdadeiramente atemporal, com a exposição das chagas de ricos hipócritas, sibaritas, complexados. Na Argentina ou aqui, eles sempre hão de fazer das suas.


Filme: Viúvas Sempre às Quintas
Direção: Marcelo Piñeyro
Ano: 2009
Gêneros: Drama/Thriller
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.