A vida dá suas tantas guinadas a despeito do que possamos querer e de quão possamos estar preparados para seus caprichos. O homem desenvolve invenções revolucionárias, que mudam por completo nossa relação com a biologia e o que poderíamos definir como uma vida saudável e feliz, leva a termo negócios que movimentam bilhões de dólares numa só tacada, continua a pesquisar e descobrir remédios para moléstias cujo desaguadouro era a morte certa e precoce enquanto não descobre a fórmula da juventude eterna, seu maior sonho e sua obsessão sem par, ainda que não seja capaz de interromper o nefasto processo de sempre se sabotar e se autodestruir. A ciência, a medicina, a arquitetura e, claro, a arte seguem seu propósito de tornar mais humano o bicho homem, que responde declarando guerras — não raro contra povos irmãos de uma mesma pátria —, concentrando renda da maneira mais escandalosamente desigual que consegue e eximindo-se de qualquer responsabilidade quanto à miséria de quem não conhece. Em outras palavras, o homem segue inarredável no que parece ser sua principal meta: ser seu próprio lobo.
Apesar da inegável semelhança com produções como “Os Goonies”, dirigido por Richard Donner (1930-2021), e “Conta Comigo” (1986), levado à tela por Rob Reiner, “Live is Life” (2022) tem personalidade própria, a começar pelo cenário. Situando o quinteto de protagonistas nas paisagens de beleza agreste da Galícia, comunidade autônoma no noroeste da Espanha, Dani de la Torre dá sua versão à narrativa aparentemente gasta de adolescentes ávidos por encontrar o tal sentido da vida. O que mais impressiona no novo longa de De la Torre é o jeito como o diretor conduz cada sequência de modo a deixar transparecer toda a espontaneidade daqueles cinco garotos algo amedrontados diante da expectativa de crescer — sendo que um em particular tem razões especialmente fortes para não deixar que escape um instante que seja —, o que lhe exige um domínio incomum do que acontece no set e fora dele. Cinco candidatos a jovens adultos podem ser fonte inesgotável de complicações; se houve algo que se assemelhe a isso, o desempenho do quinteto diante das câmeras foi bom o suficiente para que essas questiúnculas ficassem reduzidas ao silêncio dos bastidores, subjugadas pela ficção.
No verão de 1985, como sempre acontece, Rodri, o mais carismático dos meninos, viaja com os pais da Catalunha para a casa da avó em Ribeira Sacra, cidade da Galícia em que também passam as férias seus quatro melhores amigos. O roteirista Albert Espinosa reserva ao personagem de Adrián Baena a incumbência de conferir à história aquele caráter de filme de verão, de história de férias que marca a vida de todos nós em alguma medida num determinado ponto de nossa jornada. Nem bem o enredo começa a deslanchar e a audiência se flagra totalmente absorvida pelo que poderão ser os próximos dias daqueles cinco tipos meio fanfarrões, pressentindo que talvez essa seja a oportunidade derradeira para se reunirem. O câncer avançado de Maza, vivido por Raúl del Pozo, é citado com muita delicadeza, e não obstante a narrativa derive para esse lado a dada altura, os eventos se sucedem de forma assombrosamente orgânica, dando vazão à poderosa carga dramática que brota daí, mas sem deixar que os outros personagens transformem-se em meros coadjuvantes de luxo.
A sombra da morte obnubila a maratona de diabruras de Rodri; Maza; Garriga, de Javier Casellas (obviamente chamado de “Barriga” em certos momentos); Suso, o mais chegado a aventuras que ficam a um triz de tombar para a delinquência, interpretado por David Rodríguez, e Álvaro, a encarnação do romantismo admissível em criaturas que já não são crianças, mas têm de amargar um longo percurso até que virem homens, personagem de Juan del Pozo. Esse decerto é o argumento que paira sobranceiro acima dos cinco amigos, acossados sem trégua por uma gangue de arruaceiros composta de marmanjos mais velhos. A inclusão de um sexto elemento à turma, uma garota de menos de um ano largada à própria sorte num povoado vizinho depois de um acontecimento infausto, se presta a um tropo bastante oportuno para que De la Torre elabore a premissa da continuidade implacável da vida, espécie de pedra de toque em histórias dessa natureza, mas usada com inventividade pelo diretor.
Filme: Live is Life
Direção: Dani de la Torre
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Coming-of-age
Nota: 8/10