Uma era de ditaduras. Esse é o saldo dos últimos cem anos na história da humanidade, em todo o mundo. Seja de esquerda ou de direita, regimes totalitários, muitas vezes personificados na figura de um único tirano, sopraram um vento de arbítrio, violência e morte, que ainda hoje, em alguma medida, pode ser sentido.
Baseado em fatos reais, “A Trincheira Infinita” (2019) se debruça sobre a história de Higinio Blanco, opositor do governo ditatorial do caudilho espanhol Francisco Franco (1892-1975), o general que em 1° de outubro de 1936 ascende a chefe de Estado da Espanha mediante um golpe. Vivido por Antonio de la Torre, Higinio Blanco, o protagonista do filme de Jon Garaño, Aitor Arregi e Jose Mari Goenaga, foi obrigado a se autoexilar em sua própria casa, por mais absurda que a situação pareça, dada a evolução galopante da truculência da tirania franquista. Caçado pelos homens de Franco, o ativista escolhe o pior cárcere que poderia: Blanco é obrigado a se esconder por 33 anos, como um bicho, cada vez mais atemorizado, esperando o fim do ciclo que durou uma vida inteira. Só existindo.
Bem como o stalinismo na União Soviética, entre 1922 e 1953; o nazismo na Alemanha, de 1933 a 1945; o maoísmo na China, de 1949 a 1976; e o salazarismo em Portugal, nos anos de 1932 a 1968; as ditaduras de Pol Pot (1925-1998) no Camboja, entre 1963 e 1981; o fascismo de Benito Mussolini (1883-1945) na Itália, de 1922 a 1945; Augusto Pinochet (1915-2006) no Chile, nos anos de 1973 a 1990; e Jorge Rafael Videla (1925-2013) na Argentina, entre 1976 e 1981, o franquismo, que dominou a Espanha de 1939 a 1976, se caracterizou por concentrar o poder na figura do chefe de Estado que o usurpara, senhor absoluto do destino de seus súditos, valendo-se do apoio da Igreja na luta contra o que entendiam o supremo mal da sociedade moderna de então, o comunismo.
A Guerra Civil Espanhola (1936-1939), que dá azo ao autocentrado projeto de poder de Franco, logo cede lugar à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em que o país combate junto ao Eixo, liderado pela Alemanha de Adolf Hitler (1889-1945). Higinio experimenta a sensação esquizofrênica de viver tudo aquilo, mas ser sempre coagido por si mesmo a se calar, a fim de não levar a si e a mulher, Rosa, de Belén Cuesta, para o cadafalso. A passagem do tempo, condensada pela agonia melancólica de Blanco, ganha o devido realce pela fotografia em sépia, de tons esmaecidos, um grande acerto de Garaño, Arregi e Goenaga. O trio de diretores faz questão de retratar a sucessão dos anos, usando os elementos cênicos necessários, primeiro o rádio, depois a televisão. O mundo começa a girar mais rápido e com ele o fluxo da informação. Mais gente passa a saber dos desmandos do Generalíssimo, mesmo assim a autocracia de Franco resiste.
A condição de morto-vivo de Blanco tem alguns respiros de uma bem dosada mistura entre drama e comédia, como o episódio em que, graças à extensão do refúgio, pode presenciar o romance à sorrelfa do carteiro Enrique (Nacho Fortes) com o guarda-civil (Ryan Colt Levy). Num dos encontros, Enrique e o parceiro fazem tanto barulho que o toupeira — como esses cativos passaram à história — se apresenta. Estabelece-se entre os três homens, ainda que brevemente, uma relação de cumplicidade: eles sabem o grande segredo de Blanco e o protagonista passara a conhecer a verdadeira natureza de seus vizinhos, excrescências que só um governo fundado no medo e na supressão das liberdades mais básicas do individuo podem gerar. As trincheiras do mundo físico abrigam os fossos metafóricos.
Antonio de la Torre volta a apresentar uma composição filigranada de uma persona repleta de nuances, desafiada a se encalacrar num vão de parede insalubre, o que lhe exigiu, inclusive, um trabalho de mudança corporal, como igualmente visto em “Uma Noite de 12 Anos” (2018), de Álvaro Brechner. Desempenho à altura de “A Trincheira Infinita”, uma lembrança do cinema sobre tempos passados, mas, uma vez que a humanidade nunca se emenda, estão sempre à espreita.
Filme: A Trincheira Infinita
Direção: Higinio Blanco
Ano: 2019
Gênero: Drama
Nota: 9/10