Obra-prima do cinema de Hong Kong é um dos filmes mais brutais e devastadores da Netflix Divulgação / Media Asia Group

Obra-prima do cinema de Hong Kong é um dos filmes mais brutais e devastadores da Netflix

Não há nada de errado em se tentar fazer com que o dinheiro renda um pouco mais. Contudo, medidas açodadas em busca daquela sobra que pode tirar qualquer um do sufoco por muito tempo se mostram perigosas além da conta, e a poupança de toda uma vida escorre pelo ralo num piscar de olhos, diante da cara de estupefação de quem ousou sonhar com dias melhores. Mais que as crises políticas, as crises financeiras são os eventos sociais que têm o condão de igualar a humanidade, dispondo-a num mesmo nível, o nível das falsas promessas, das ilusões despertadas aos gritos, dos projetos inexequíveis, das ideias tornadas fora de propósito. O dinheiro possibilita melhorar a própria vida e a de muita gente ao redor, mas a dependência de mecanismos para a sua preservação, que visa, por evidente, a aumentar o capital do homem comum, e assim, escravizá-lo é um veneno que se toma com gosto, sem medo de arruinar tantas outras hipóteses. Ao mesmo tempo em que buscamos a garantia de dias menos assoberbados graças a reservas monetárias que se liquefazem sem nenhum pejo ao menor sinal de desarranjo, dispensamos uma parte da vida cujo valor nunca foi estipulado, nem nunca será.

“Life Without Principle” (2011), do diretor honconguês Johnnie To, lidar com um tema que tira o sossego do mundo todo de tempos em tempos da forma mais didática que consegue — o que acaba por frustrar muita gente. Espectadores que anseiam pela pirotecnia estilística de títulos congêneres a exemplo de “A Grande Aposta” (2015), de Adam McKay, fica ligeiramente desapontados com a secura da narrativa de To, mas vencida a resistência, o que se apresenta é um enredo que prima pela agilidade enquanto reúne o maior número de sequências a fim de desdobrar o eixo da trama. O roteiro, escrito por cinco autores, decerto espelha a pluralidade de pontos de vista, com o cruzamento de vários palpites sobre o mesmo conflito, o que, por seu turno, termina por redundar em terceiras versões, umas mais emaranhadas que as outras, mas que convergem estranhamente para a simetria do desfecho, onde dois personagens centrais dividem a mesma cena sem se encontrarem. Uma delicadeza inesperada do texto, mas que define bem o que pretende a história.

Vivido por Richie Jen, o inspetor Cheung Jin-fong investiga as circunstâncias de um homicídio em Kowloon, ao norte de Hong Kong, mais precisamente num amontoado de cubículos que se constitui o lugar de maior densidade demográfica do mundo. Essas chagas abertas, purulentas e de difícil tratamento são exibidas sem maiores cuidados estéticos, a fim de preparar o terreno para o que virá. Cheung, cioso de seu trabalho a ponto de que seus deveres de ofício interfiram no casamento com Connie, interpretada por Myolie Wu, ansiosa para comprar o apartamento de que os dois vêm precisando ha algum tempo, aspiração em que o detetive trata de despejar imensos baldes de água fria, talvez por medo das prestações, da necessidade de uma hipoteca que o auxilie a honrar esse compromisso ou quiçá por já não saber mais se o envolvimento com sua carreira lhe permite seguir num relacionamento que demanda tanta atenção de parte a parte, e que ele sabe estar longe de suas capacidades.

To não desenvolve esse contexto do filme satisfatoriamente, restando ao público intuir que a separação tenha mesmo sido inarredável, mas esse deslize pode até ser atenuado graças à excelência com que o núcleo financeiro do longa vem a lume. A edição priorizada pelo diretor situa Connie num grande banco, à cata de opções para aumentar sua receita no menor tempo possível, o que, por óbvio, significa recorrer a aplicações heterodoxas que nem sempre encontram bom termo. É então que seu caminho se mistura ao de Teresa, a especialista em fundos de renda fixa e ações de Denise Ho, irretocável. To se vale da personagem de Ho a fim de dirimir alguma dúvida de quem assiste quanto ao teor da mensagem que se está querendo transmitir. Encarnando o espírito da instituição que representa, Teresa esclarece mecanicamente todos os procedimentos exigidos para a abertura da conta na nova modalidade financeira — a sequência em que tenta fisgar Kun, de So Hang-shuen, uma sexagenária que tenta incrementar seu saldo se utilizando dos sortilégios bancários que ela anuncia como a oitava maravilha, é um caco de comicidade imprópria e deliciosa. É justamente a personagem de Ho quem encarna o pensamento que defende que são bem-aventurados os espertos, porque deles será o reino da matéria. E essa poderia ser a ideia-chave de “Life Without Principle”.


Filme: Life Without Principle
Direção: Johnnie To
Ano: 2011
Gêneros: Crime/Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.