Escuro, pesado e violento, filme na Netflix vai te fazer esquecer a pipoca, morder a língua e se contorcer no sofá Divulgação / IFC Films

Escuro, pesado e violento, filme na Netflix vai te fazer esquecer a pipoca, morder a língua e se contorcer no sofá

Um homem segue sua vida da maneira mais singela possível, tentando superar traumas e esquecer os velhos rancores de um tempo aparentemente morto, mas essas questões mal resolvidas de seu passado, como sói acontecer, voltam a assombrá-lo. Escarafunchando as migalhas do que já fora um dia, ele, afinal, se reinventa, mas como sói acontecer na vida como ela é, seus fantasmas voltam a atormentá-lo, agora com muito mais força. A expiação dos pecados de uma vida inteira se dá mediante um processo custoso, de que não sai exatamente curado, mas robustecido, pronto para encarar qualquer outra surpresa pouco menos usual, até que, como num um turbilhão, o curso dos acontecimentos retoma sua origem caótica e esse homem é lançado para dentro do calabouço de que escapara a duras penas. Como o guerreiro que continua a ser, arma-se de novo, mas dessa vez toma o cuidado de se valer de novos métodos e não repetir velhos erros. Está mais experiente, mais sábio, e da mesma forma mais alquebrado e mais desesperançoso. Só luta porque não sabe viver de outra maneira.

O filme de Paul Solet entrega muito da história já no título, quando também faria muito mais sentido se manter o nome original. Poder-se-ia definir “Passado Violento” (2021), ou “Clean” (“limpo” na tradução literal) como o coming-of-age de um personagem já crescido, forçado a confrontar velhas questões que não só restam por serem dirimidas como estão ainda mais obscuras. O longa é, sob várias perspectivas, um ponto fora da curva. Apesar de contar com Solet por diretor, e o DNA do ator principal que mais se pronuncia aqui. Adrian Brody, eternizado como Władysław Szpilman, o pianista polonês acossado pelas tropas nazistas em Varsóvia durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mote do filme de Roman Polanski pelo qual venceu o Oscar de Melhor Ator de 2003 — o mais jovem até hoje —, é também produtor, corroteirista e compositor da trilha de “Passado Violento”. Nitidamente um projeto individual, afetivo, Brody precisou da assistência e do olhar crítico de Solet a fim de não deixar que ideias apenas razoáveis passassem como toques de gênio, e o responsável por “O Mistério de Grace” (2009), um dos melhores filmes de terror de todos os tempos — uma espécie de “O Bebê de Rosemary” (1968) sem as metáforas refinadas de Polanski —, decerto deu seus pitacos mais certeiros. A afinidade dos dois, visível em “Alvo Triplo” (2017), garantiu que a nova empreitada de Brody não fosse um tiro no pé.

Em “Passado Violento”, o ator dá vida a Clean, um lixeiro cujo nome oficial nunca se fica sabendo. Brody consegue deixar transparecer a angústia de seu protagonista valendo-se das expressões sóbrias que caracterizam seu trabalho, enriquecido pela fotografia de Zoran Popovic, que eleva ao limite a sensação de franco desnorteio carregando nos tons escuros e frios das noites de Utica, no coração do estado de Nova York. Tentando achar as respostas de que diz precisar tanto e sofrendo com o que define como um “infindável ataque de feiúra” do mundo a sua volta — nesse ponto muito semelhante ao Travis Bickle de Robert De Niro em “Taxi Driver” (1976), de Martin Scorsese, um especialista em desenvolver tipos que tais —, Clean só deseja ganhar a vida de modo honesto, ainda que tratando com a imundície em estado bruto. Esse passado de violência a que Solet e Brody aludem em seu filme também resta um tanto enigmático, enigmático demais, cabendo ao espectador tirar conclusões as mais díspares entre si, todas, por evidente, nada elogiosas. Não obstante, Clean, o lixeiro hipster de Utica, ganha a confiança do público; as cenas em que remexe o lixo à cata das sobras de ferro que vende para Kurt, o comerciante de sucata de RZA, catapultam a história para um segundo ato, esse, sim, violento, em que o protagonista abdica de qualquer ilusão quanto a um dia ser feliz e enfrenta Michael, o poderoso gângster local vivido por Glenn Fleshler. Tudo para resguardar a honra de Dianda, uma enteada bastante leviana, interpretada por Chandler Ari Dupont — outra charada à reta final da trama.


Filme: Passado Violento
Direção: Paul Solet
Ano: 2021
Gêneros: Mistério
Nota: 8/10