A história mais selvagem e aterradora da Netflix Divulgação / Netflix

A história mais selvagem e aterradora da Netflix

A morte é sempre uma visita indesejada, mas quando se trata da morte de uma mulher de apenas vinte anos, em circunstâncias misteriosas e barbaramente violenta, essa intrusa precisa ser confrontada com o rigor necessário. Morrer não é necessariamente ruim, dependendo da forma como se conduziu a vida; a morte vem a ser nada mais que um espelho de nossas ações ao longo dos anos, respondendo de maneira suave ou insuportavelmente austera ao modo como decidimos passar os dias sob o sol — e também não há garantia alguma quanto a ter uma boa morte só porque se viveu de maneira honrada. A verdade é que, em se tratando de vida e morte, não existe regra para nada, e defender o argumento de que a forma como se morre está sempre, inescapavelmente, relacionada à vida que se teve; às atitudes tomadas diante das mais diversas circunstâncias, sobretudo as de vicissitude; ao desempenho moral frente a desafios que nos exigem uma dose de ponderação e sacrifício de que nem sabíamos dispor acaba por reforçar a tese abjeta da culpa da vítima. Ninguém deseja morrer, muito menos mediante sofrimento. Ponto.

A diretora Skye Borgman se presta a esclarecer e jogar luz sobre uma história particularmente monstruosa em “A Garota da Foto” (2022), relato de uma selvageria, mas também (e principalmente) outra prova do quão baixo o homem sempre pode ir. Talvez supondo que o mote de seu filme fosse sempre encarado com uma nesga de desconfiança caso fosse uma ficção baseada em fatos reais, Borgman opta pelo documentário, com raras intervenções dramatúrgicas, para discorrer sobre um dos eventos criminosos mais permeados por mistério da história da crônica policial americana. Já dispondo de experiência para tanto, adquirida em outras produções do gênero a exemplo de “Sequestrada à Luz do Dia” (2017) e “Dead Asleep” (2021), a diretora transita confortavelmente pelo assunto que destrincha, sem se preocupar muito em propor qualquer espécie de respiro ao longo de uma narrativa cadenciada, muito pelo contrário. Quanto mais pululam as informações, melhor ela as absorve, como se o roteiro escrito pela própria vida fosse um quebra-cabeça que se resolvesse automaticamente, só sendo necessário alguém sensível e competente para juntar todas as peças de modo a compor um todo harmonioso. Skye Borgman é essa pessoa. 

Em abril de 1990, uma mulher que se acredita ser Tonya Hughes é encontrada gravemente ferida à beira da estrada em Oklahoma City, centro-oeste dos Estados Unidos. Ela acaba não resistindo, e morre, aos 21 anos incompletos, no hospital em que estava sendo assistida, deixando um filho de dois anos. Algumas sequências depois, Borgman mostra que essa mulher, dançarina no Passions, um clube de nudez em Tulsa, no nordeste do estado, funcionária exemplar, bonita, mas muito mais ingênua que propriamente sexy, e querida por todos, tinha uma vida paralela, da qual amigas mais próximas como Karen Parsley, sua colega nos palcos banhados de neon do Passions, suspeitavam. O que ninguém jamais poderia supor é que nunca houvera Tonya Hughes alguma. Aquela mulher taciturna escondera seu passado deliberadamente, estaria envolvida num plano de vingança que dera errado ou fora vítima de uma das maiores desumanidades a que um ser humano pode estar sujeito?

O filme começa mesmo a partir dessa revelação, momento em que Borgman chama a participar da narrativa personagens como o então agente do FBI Joe Fitzpatrick, hoje aposentado, a fim de acrescentar os elementos que exacerbam o suspense em torno da figura de Tonya, que passa a ser conhecida por Sharon Marshall. As duas terminaram seus dias da mesma forma, por óbvio, mas detalhes muito pronunciados as diferem. Sharon era uma estudante aplicada: consegue uma bolsa de estudos integral para a Georgia Tech, um dos institutos acadêmicos mais respeitados dos Estados Unidos, mas sempre a reboque do pai, Warren, vê seu sonho se desvanecer de um instante para o outro. É justamente Warren, um tipo exótico e mesmo nefasto — e uma foto que guardava, a que o título alude — a chave para que se conheça, afinal, quem foi Tonya, ou Sharon.


Filme: A Garota da Foto
Direção: Skye Borgman
Ano: 2022
Gênero: Documentário
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.