Tenso, perturbador e atual, suspense francês na Netflix é um dos filmes mais angustiante e devastadores dos últimos anos

Tenso, perturbador e atual, suspense francês na Netflix é um dos filmes mais angustiante e devastadores dos últimos anos

Viajar é bom, mas ter a certeza de que se pode voltar para casa em segurança e reencontrar tudo no lugar em que sempre esteve também não é nada mau. O que parece ser a consequência natural da vida — interromper a batida violentamente monótona do cotidiano e retomá-la depois de um período de descanso, por mais breve que seja — é prazer dos mais básicos na vida de qualquer um, e que a ninguém deveria ser negado. Contudo um casal de classe média francês, uma mulher branca e seu marido, negro, se veem condenados ao destino cruel de não saber mais se terão o direito de retomar sua história do ponto em que pararam porque nem conseguem mais entrar na casa em que sempre viveram com o filho. Narrativa que esconde diferentes níveis de complexidade e de pânico, justamente por tão absurda, é esse o cenário em que os personagens, tirados de uma história real, têm de viver, forçando-se a suportar uma humilhação após a outra, um e outro golpe na autoestima, consecutivas fraturas na dignidade que transformam o dia a dia na verdadeira prova de fogo que talvez não possam vencer.

“Estranhos em Casa” (2019), o thriller psicológico de Olivier Abbou, aproveita uma trama de horror para discorrer sobre medos mais profundos e menos tangíveis. Dentre eles, talvez a noção tradicional de virilidade, do que é ser um homem no sentido estrito, seja o mais flagrante, amparado por racismo, crítica à propriedade privada — e por extensão ao sistema capitalista —, crises políticas em países de democracia instável e as debilidades que todo casamento apresenta, em maior ou menor proporção. Paul Diallo, o anti-herói vivido por Adama Niane, regressa das férias com a mulher, Chloé, de Stéphane Caillard, e Louis, o filho do casal, e se deparam com a situação descrita no título, com a ressalva de que esses intrusos não são propriamente desconhecidos: a casa fora tomada por Sabrina, a babá vivida por Marie Bourin, e seu marido Eric, de Hubert Delattre, autorizados a usá-la enquanto a família estivesse fora. O roteiro de Abbou e Aurélien Molas não explica ao certo o instrumento de que os invasores se valem para seguir habitando o imóvel —menciona-se um contrato, mas não se fica sabendo em nome de quem —; entretanto, por maior que seja a revolta de Paul e sua peleja para desfazer a operação, tudo o que ele consegue é deixá-los cada vez mais fortes, respaldados pela polícia e pela lei. A única alternativa que vislumbra é levar a família para o terreno destinado à instalação de quem não pode pagar por moradia formal, onde o trailer em que dormiram ao longo da viagem torna-se seu lar permanente. Na nova vizinhança, Mickey, o gerente interpretado por Paul Hamy, passa a exercer uma estranha influência sobre Paul, tendo por vantagem o antigo vínculo com Chloé.

A trilha sonora de Clément Tery, plena de acordes jazzísticos e solos de bateria, vai ambientando o espectador na tensão crescente da história, momento em que o personagem de Hamy ganha destaque. Constantemente ultrajado por não ser capaz de reaver sua casa — a sequência em que Paul é desafiado por um aluno também negro é certamente o ponto de partida para as discussões mais elaboradas do texto de Abbou e Molas —, o professor vai, ainda que temporariamente, aquiescendo quanto a sua nova condição. As saídas com Mickey, em que se transporta para o mundo marginal do novo companheiro de farras, dão a entender que está disposto a abdicar de seu status de homem culto e civilizado e acederá também ao estilo de vida do outro, que lhe revela sua natureza selvagem sem pejo. O vilão é mais um a jogar-lhe na cara sua suposta frouxidão moral, argumento que o diretor a todo instante faz questão de remeter ao exercício da masculinidade. Prova mais inquestionável disso são as cenas em que o personagem investe contra Chloé, estimulado pela certeza de que Paul sofre de alguma impotência sexual. Abbou conduz essa subtrama, fugaz, mas lapidar, de modo a fazer quem assiste temer pela recaída da mulher. O que se vê é um jogo de luz e sombra, metafórico e também físico — mérito da fotografia esmerada de Laurent Tangy —, que dá a dimensão do que ainda está por ser exposto.

O filme tem alguma semelhança com o badalado “Parasita” (2019), do sul-coreano Bong Joon-ho, ganhador do Oscar de Melhor Filme em 2020, mas saiu mesmo da mesma fôrma que “Nós” (2019), outro terror de cunho inegavelmente filosófico, de Jordan Peele — com a primazia de ser muito menos pernóstico e mais consistente. Abbou escolhe por desfecho o dramalhão rasgado, e ainda assim tem o condão de preservar a naturalidade vista desde o princípio, relembrando o caráter verídico do que é contado. “Estranhos em Casa” não abre mão de seu poder reflexivo, ao passo que impacta pelo apuro estético, tendência que se espera definitiva em produções do gênero.


Filme: Estranhos em Casa
Direção:
Olivier Abbou
Ano: 2019
Gêneros: Terror/Thriller
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.