Jornalista afirma que Hitler morou e morreu na Argentina

Jornalista afirma que Hitler morou e morreu na Argentina

O livro “El Exilio de Hitler” (Ediciones Absalón, 493 páginas), do jornalista argentino Abel Basti, de 54 anos, sustenta que o líder nazista e sua mulher, Eva Braun, não se mataram. “Fugiram” para Barcelona, onde passaram alguns dias, e depois foram para a Argentina, onde morreu, nos anos 60. Dezenas de livros mais equilibrados sustentam que a polícia secreta comunista levou os restos mortais (queimados) de Hitler e Eva Braun para a União Soviética. Basti afirma, sem apresentar documentação confiável, que a informação não é verdadeira e que os nazistas, como Hitler, o chefe da Gestapo, Heinrich Müller, e Martin Bormann plantaram pistas falsas. Entrevistado pelo jornal “ABC”, da Espanha, sustenta que “existem três documentos” que comprovam que o nazista não se matou: “Do serviço secreto alemão, que dá conta de que chegou a Barcelona, procedente de um voo da Áustria; do FBI, que indica que ‘o exército dos Estados Unidos está gastando a maior parte de seus esforços para localizar Hitler na Espanha’; e um terceiro do serviço secreto inglês, que fala de um comboio de submarinos com líderes nazistas e ouro saindo rumo a Argentina, fazendo uma escala nas Ilhas Canárias”.

O livro, publicado em maio deste ano (sem edição brasileira), provoca sensação na Espanha, pelas revelações “surpreendentes” e, no geral, contestadas por historiadores profissionais. Mas as informações de Basti não deixam de ser curiosas, principalmente por ser correta mas óbvia a informação de que vários nazistas escaparam para a Argentina de Juan Domingo Perón.

Um jesuíta nonagenário é apresentado por Basti como uma de suas mais importantes fontes. Ele dispõe de muitas informações sobre a presença de Hitler na Espanha, segundo o jornalista. No livro, porém, não revela nada de sensacional.

Um documento secreto alemão aponta Hitler como passageiro de um avião que se dirigia da Áustria para a Espanha, em 26 de abril ou nas primeiras horas de 27 de abril de 1945. “Foi uma comunicação oficial secreta com cópias para o piloto Werner Baumbach, que imigrou para a Argentina e levou consigo uma cópia. Baumbach, junto a outros conhecidos pilotos nazistas, trabalhou no projeto aeronáutico de Perón.”

Para não ser reconhecido, Hitler cortou o cabelo, ficou quase careca e raspou o bigode. Teria ficado irreconhecível. “O corte do bigode deixou à mostra uma cicatriz, sobre o lábio superior, que não era conhecida por gente comum.” Sintomaticamente, no livro, Basti não enfatiza tais informações, que repassou ao “ABC”.

A versão oficial garante que Hitler e Eva Braun se mataram em 30 de abril de 1945. Basti contesta: “Nunca houve provas de sua morte. Não há perícias criminalísticas que demonstrem o suicídio. O Estado alemão deu Hitler como morto quase 11 anos depois, em 1956, por presunção de falecimento. Ou seja, legalmente, para a Alemanha, Hitler estava vivo depois de 1945. Não só vivo — não era um homem condenado pela Justiça; não havia ordem de captura, nem processo judicial. Enquanto Hitler se encontrava na Espanha, no bunker se representava uma grande farsa, cujo ator principal foi um dos duplos [sósias] de Hitler. Durante as últimas horas, o duplo foi drogado e preparado para que representasse o ato final”. Há livros que citam a possibilidade de um ou mais duplos de Hitler, como havia de Stálin, mas, no dia do suicídio, nenhum duplo estava na chancelaria. Basti não apresenta documentos e testemunhos confiáveis. Conta histórias próximas da ficção literária. O sósia que “morreu” no lugar de Hitler seria, conta Basti, um sujeito atrapalhado.
Basti assegura que “a fuga de Hitler estava prevista em um grande plano de evasão — de homens, capital e tecnologia — preparado pelos nazistas. Esse plano, em 1945, recebeu luz verde dos norte-americanos, como resultado de um pacto secreto militar. Os milhares de nazistas que puderam fugir para o Ocidente — dos quais cerca de 300 mil foram para os Estados Unidos — foram ‘reciclados’ [recrutados] para lutar contra o comunismo. Hitler se transformou num dinossauro vivo, protegido e refugiado”.

O entrevistador Antonio Astorga menciona documentos secretos britânicos nos quais se revela que Hitler fugiu para a Argentina num submarino, “com escala técnica nas Ilhas Canárias”. A versão de Basti: “Antes que o comboio de submarinos partisse da Espanha, a Armada [Marinha] norte-americana retirou todas as suas unidades navais do Atlântico Sul. Os submarinos nazistas ‘trocaram mensagens’ com a frota norte-americana. As mensagens foram interceptadas pelos ingleses”. No livro, Basti amplia as informações, mas, como de hábito, não apresenta testemunhos fidedignos, exceto especulações. Baseia-se, no geral, em documentos antigos e, quando suas teses se tornam nada convincentes, alega que os governos, principalmente o norte-americano, não desclassificaram os documentos necessários à compreensão do caso.

Embora não hajam evidências em trabalhos substanciosos, como os de Ian Kershaw (“Hitler”), de Richard J. Evans (“A Chegada do Terceiro Reich” não trata do assunto, mas sua sequência, não publicada no Brasil, sim), de Marlis Steinert (“Hitler”), de Max Hastings (“Armagedón — La Derrota de Alemanha”) e Henrik Eberle e Matthias Uhl (organizadores do esplêndido “O Dossiê Hitler — O Führer Segundo as Investigações Secretas de Stálin”), do que Basti apresenta no seu bombástico livro, citemos mais um trecho de sua suposta “pesquisa” (citada na entrevista ao “ABC”), que mais parece ficção: “Hitler, que chegou a Argentina com 56 anos, viveu como um fugitivo. Com identidade falsa e tratando de passar o mais despercebido possível. Nos primeiros anos, viveu numa estância nas proximidades de Bariloche, depois em outras partes do país, já que trocou de residência em mais de uma oportunidade. Sempre acompanhado de seguranças, às vezes três. Sua atividade política se limitou a algumas reuniões com velhos camaradas e com alguns militares argentinos. Hitler morreu na Argentina nos anos sessenta; Eva Braun, mais jovem, sobreviveu” ao marido. No livro, paradoxalmente, Basti fala muito sobre o assunto, dando voltas, mas sem esclarecer como Hitler viveu na Patagônia. Ele trabalha com “sugestões” e indícios, não com fatos e documentos.

A “pesquisa” resulta de maluquice ou de invenção de Basti, ou de apresentação de documentos conspiratórios mal digeridos e interpretados? Parece loucura de jornalista sensacionalista. De qualquer modo, é uma grande história, que, a rigor, não é tão nova assim. Basti tão-somente a requenta, acrescentando, como diz, “documentos secretos”. Pensa-se, muitas vezes, que todos documentos secretos, por serem secretos, contêm “a” verdade. Nem sempre é assim, como sabem historiadores rigorosos. Muitos documentos, mesmo secretos, têm o objetivo de despistar e, algumas vezes, de reforçar mitos e esconder “a” verdade. Podem ser instrumentos de manipulação. Jornalistas têm o hábito, ao receberem documentos secretos, de publicá-los imediatamente, como se fossem um retrato preciso da realidade. Acertam, às vezes, e, outras vezes, erram. Mas, quando erram, tergiversam e publicam outra (a nova) versão. Jornalistas não gostam de ser corrigidos.

O principal equívoco de Basti talvez resida no fato de que o alicerce de sua argumentação é frágil. O jornalista pesquisou documentos da época, sobretudo despachos de agências de notícias, que necessariamente revelam as especulações do momento, sem nenhum apuro investigativo, ignorando toda a pesquisa posterior. Então, entre 1945 e 1950, pelo menos, falou-se muito na fuga de Hitler, mas, em seguida, o assunto praticamente morreu, exceto em fantasias de jornalistas sensacionalistas. O livro “O Dossiê Hitler” (Record, 627 páginas), contém as informações mais aceitáveis sobre o fim de Hitler. Foi elaborado pelos soviéticos, com base nos depoimentos de nazistas que estavam próximos de Hitler até a data de seu suicídio, como Heinz Linge e Otto Günsche. A Operação Mito, criada por Lavrenti Beria, para investigar a morte de Hitler, resultou no mais amplo relato sobre os últimos dias do ditador. Saiu em 2005 na Alemanha e em 2007 no Brasil. É a palavra (quase) final sobre o assunto e põe o livro de Basti no chinelo. Nas 42 páginas finais de “Hitler” (Dom Quixote, 849 páginas), nos capítulos “Extinção” e “Epílogo”, Kershaw não leva a sério as fantasias divulgadas por Basti e, por isso, não as menciona. Afirma, com todas as letras, que Hitler morreu em 1945. Bormann e Müller também morreram.