Uma criatura nascida metade frango, metade coelho, que tem em si as duas naturezas e não tem nenhuma, deseja dar a sua vida o mesmo destino que a do pai e ser um desbravador do mundo. Teoricamente, nada o impediria, mas essa sua condição especial tolhe seus sonhos na origem, até que a necessidade o obriga a tomar uma atitude a fim de evitar que algo de catastrófico ocorra, e para isso terá de fazer frente a alguém que o conhece como poucos e sabe como aniquilá-lo. Quem nunca passou por dilemas e traumas parecidos, em que viver exige de nós muito mais que coragem, foi poupado de muitos dissabores, mas também perdeu excelentes oportunidades de receber lições de valor inestimável. Conhecer-se, a fundo, em tal medida que seja impossível sabotar-se a si mesmo, não é exatamente simples, e essa condição vira uma questão de proporções quase invencíveis se nos vemos constantemente afrontados por nós mesmos, se nos descobrimos propensos a sermos mais cruéis nos julgamentos para com nossas próprias atitudes que o mais impiedoso dos carrascos.
“Frangoelho e o Hamster das Trevas” (2022) dispõe de temas importantes com leveza, fomentando discussões envolvendo personalidade, bravura, autoafirmação e a busca por justiça, tudo de forma lúdica, ao alcance de crianças, mas também de adultos — e diga-se o se quiser dizer, mas quanto mais nós, os que deteríamos a tal maturidade porque já longe da infância há algum tempo, alegamos que produções como essas não nos interessam, mais somos obrigados a engolir nosso orgulho, exercitar nossa honestidade de sentimentos e rever nossa posição. Primeiro, porque a animação dos belgas Ben Stassen e Benjamin Mousquet e um primor do ponto de vista técnico; depois, porque sempre, rigorosamente sempre, existe nessas narrativas um verdadeiro manancial de figuras de linguagem, ora sutis, ora chocantes de tão escancaradas, todas plantadas ali no lugar certo, no momento ideal para que nenhuma das discussões propostas pelos diretores reste ignorada. Esse expediente singelo (ou nem tanto) das animações — que eu prefiro seguir nomeando de desenhos animados — vem desde Walt Disney (1901-1966), numa retrospectiva bastante conservadora, que espertamente adaptou contos e lendas de extração escandinava, africana e indígena à luz de personagens gráficos e com eles erigiu um império que perdura pela história e atravessa o tempo.
No caso de Hopper Chickenson, o frangoelho do título, essa criança esquisita, meio galinha, meio lebre, tenta de todas as maneiras corresponder ao amor de Arthur, que o encontrou recém-nascido, abandonado numa canoa à beira do rio, empenhando-se por se revestir de uma força que ainda não tem, que talvez não tenha jamais. Arthur, um coelho legítimo, e corajoso, ganhava a vida dedicando-se a aventuras em que era desafiado a chegar ao paradeiro de tesouros cobiçados por reinos de toda a Terra, até assumir ele mesmo o trono, a aspiração maior da vida de seu irmão, Lapin, preterido pelo pai dos dois, o rei de Featherbeard. Década e meia mais tarde, Lapin está preso por conspiração depois de atentar contra a coroa, e cabe justamente a Chickenson, o Chickenhare, o frango-coelho, o Frangoelho, lançar-se numa jornada perigosa até a ilha remota onde o tio cumpre pena a fim de convencê-lo a devolver o livro que indica onde está o Hamster das Trevas, um amuleto que garante a proteção do monarca. Ao visitar Lapin, Frangoelho fica sabendo que o presidiário continua firme em seu intento de destituir o irmão à força, uma vez que consultara uma infinidade de livros até se deparar com a informação de que o Hamster das Trevas é o talismã mais poderoso que um candidato à liderança de Featherbeard poderia almejar. O que o guia à conclusão óbvia de que Lapin planeja fugir da prisão e outra vez dar vazão a seu delírio autocrático. Para barrá-lo, Frangoelho conta com a Abe, uma tartaruga tão sábia quão medrosa, e Meg, a gambá destemida e charmosa, mas sempre preterida por motivos de ordem fisiológica, um clichê tolo no roteiro de David Collard, mas que aqui se presta a defender o humor num enredo que pareceria soturno sem esses flertes com a graça despretensiosa.
Filme: Frangoelho e o Hamster das Trevas
Direção: Ben Stassen e Benjamin Mousquet
Ano: 2022
Gêneros: Aventura/Comédia
Nota: 8/10