Às vezes, o amor se pinta com as cores da tragédia. Por sua natureza controversa, o mais humano dos sentimentos pode degringolar em cenários não propriamente românticos, nem mesmo estimulantes, todavia continua a ser amor — um amor doentio, fedendo a psicopatologia, mas amor. Distinguir onde um este termina e cede lugar àquela pode ser uma tarefa árdua, uma vez que o amor apresenta-se sob formas nada convencionais muitas vezes, abrindo o flanco para o julgamento de quem está sempre pronto a atirar pedra. Não se trata de aceitar tudo em nome do amor sem nenhum parâmetro moral, mas de analisar os efeitos do que pode fazer o amor na vida de uma pessoa cuja solidão nunca arrefece, e pior, faz com que essa pessoa creia verdadeiramente que se trata de amor um sentimento muito mais afeto à ilusão, essa, sim, capaz de passar por cima de quem quer que seja sem piedade, deixando para trás somente seu rastro de amargura e destruição. Quando não sobra nada mais, o enamorado se agarra a sombra do que dizia sentir, como que para preservar o derradeiro fio de seu orgulho ferido de morte.
Um dos grandes mestres em cantar o amor no cinema, Pedro Almodóvar revela uma nota dissonante de sua carreira em “Fale com Ela” (2002), retrato da desdita de um homem apaixonado. O filme começa de modo um tanto melodramático, farsesco até, com dois homens lado a lado na plateia de um espetáculo de dança. No palco, a coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-2009) desloca-se pelo espaço como se não enxergasse, ajudada por um homem, que remove cadeiras e mesas do seu caminho. À medida que a narrativa de Almodóvar se adianta, percebe-se um pouco quem são esses espectadores, um jornalista e um enfermeiro, um homem aparentemente durão e o outro mais sentimental que o desejável. Marco Zuluaga e Benigno Martín derramam suas lágrimas nada furtivas movidos pelo que se passa em cena, uma metáfora doída do amor que se acaba ou, pior ainda, do amor que afeta um, mas é inócuo para a outra. A direção certeira de Almodóvar faz com que Dario Grandinetti e Javier Câmara deixem explícito desde já a troca de papéis a se configurar entre eles no decorrer do roteiro.
Já habituado à solidão, Marco conhece Lydia González, performance magnética de Rosario Flores, num balcão de bar. Lydia, a toureira mais incensada da Espanha, tem de administrar um divórcio algo traumático, e é justamente por esse vácuo emocional que Marco se infiltra. O personagem de Grandinetti tenta uma entrevista com essa mulher forte, mas momentaneamente fragilizada pelas circunstâncias; ela não cede propriamente, mas pede uma carona até sua casa, ao longo de cujo caminho podem conversar. Em lá chegando, os dois se despedem, Lydia desembarca e tudo leva a crer que passem muito tempo sem se tornarem a encontrar. Marco está dando a partida quando é arrebatado por gritos de mulher: é a toureira, tão corajosa no trato com aquelas feras, covardemente acuadas e feridas na arena, mas vítima do medo paralisante de um animal muito menor. Lydia entra no carro outra vez, agora com destino a um hotel. Ela faz questão de frisar que não tem planos de tornar aquela casa, como se o imóvel tivesse sido tomado por uma maldição qualquer. Coincidentemente ou não, a vida da personagem de Flores sofre uma reviravolta de franca desdita, e ela acaba em coma, no quarto contíguo ao de Alicia Roncero, a bailarina em estado vegetativo vivida por Leonor Watling, assistida por Benigno.
Aqui, Almodóvar começa a virar a chave de “Fale com Ela” para uma narrativa visivelmente mais densa, de uma violência apenas sugerida, e por isso mesmo tanto mais funesta. Fica cada vez nítido o interesse amoroso — e abjeto — de Benigno por sua paciente, de todo incapaz de reagir a seus estímulos, diga-se. Alicia está hospitalizada há bastante tempo, e vai resistindo, ao contrário de Lydia, que morre. Marco, que nem chegara a se afeiçoar direito à toureira — a passagem que se segue à apresentação de Caetano Veloso cantando “Paloma”, de derreter o mais férreo dos corações, é o máximo de sentimento que chegou a vibrar de parte a parte —, continua a frequentar o quarto de Alicia, a fim de trocar impressões com Benigno sobre a vida que ambos levam, com muitos pontos de contato. A grande guinada do enredo, que une Alicia, Benigno e Marco, deixa claro que o diretor pretende mesmo escancarar questões de fundo moral, permitindo que cada um aprecie o caso e tome suas próprias conclusões.
E nisso Almodóvar é hábil como ninguém. Evocando temas verdadeiramente escandalosos com leveza sem par, esse homem, decerto um atormentado com as agruras dos outros, faz de grandes tragédias as obras-primas que definem sua carreira. “Fale com Ela” é, sem dúvida, atemporal em sua crueza.
Filme: Fale com Ela
Direção: Pedro Almodóvar
Ano: 2002
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 10