Silenciosamente emocionante, novo filme da Netflix vai te dar arrepios Divulgação / Netflix

Silenciosamente emocionante, novo filme da Netflix vai te dar arrepios

Transcorridas quase três décadas, uma página de opróbrio da história contemporânea da humanidade volta a ser folheada, reacendendo as discussões sobre um dos maiores escândalos que o mundo já viu. Entre 7 e 15 de julho de 1994, a disputa étnica entre os grupos hutu e tútsi lavou de sangue Ruanda, um pequeno país da África Oriental. Mesmo compondo apenas 15% da população ruandesa, os tútsis detiveram o poder até 28 de janeiro de 1961, quando teve fim a monarquia de Kigeli V Ndahindurwa (1936-2016). Cerca de um ano e meio depois, Ruanda foi declarada independente da dominação belga, em 1° de julho de 1962, mas nunca pôde experimentar em plenitude as vantagens de ser uma democracia de fato. Em 1990, um movimento em busca de reparação social liderado por dissidentes tútsis exilados em países vizinhos como Uganda invadiu o território ruandês, combatendo pela Frente Patriótica Ruandesa, a RPF. Reivindicando o armistício oficial entre as duas etnias, os revolucionários da RPF levaram os combates até 1993, quando a paz foi, afinal, selada. Entretanto, em 6 de abril de 1994, o avião em que viajavam o presidente de Ruanda, Juvenal Habyarimana, e o chefe de Estado de Burundi, Cyprien Ntaryamira, ambos hutus, foi abatido, um dos episódios mais controversos da história africana. O atentado teve a força de reavivar as animosidades entre tútsis e hutus, que se incriminaram mutuamente — os hutus foram acusados de urdir uma sabotagem a título de pretexto para novas investidas contra os rivais. O que veio na sequência foi a barbárie: em franca vantagem numérica e muito mais bem armados, hutus passaram a caçar tútsis, e em somente cem dias, aproximadamente 800 mil cadáveres tomaram as ruas de todas as cidades de Ruanda.

Tomando por premissa imagens reais de civis hutus matando cidadãos tútsis com as próprias mãos, a diretora americana Alanna Brown usa 97 minutos para falar de barbárie, resistência e tolerância em “Árvores da Paz” (2022), produção independente que une beleza e violência numa combinação improvável: quatro mulheres de origens e crenças distintas se mantêm juntas no cômodo secreto e apertado da casa de uma delas, a fim de escapar da morte. Brown começou a se debruçar sobre o roteiro do filme em 2012, e até que a história saísse do papel, o caminho foi longo. A diretora passou anos comparecendo a reuniões em que sempre ouvia a mesma litania: o enredo é muito bom, mas pouco exequível. Enquanto não conseguia bater o martelo, Brown financiava, às próprias custas, material de divulgação como cartazes e trailers. Lançando mão de expedientes como campanhas de crowdfunding, as vaquinhas virtuais, ela juntou mais algum dinheiro, que continuava insuficiente para o tamanho de suas pretensões, mas gerou mídia espontânea capaz de alcançar os olhos e os ouvidos de investidores privados, que resolveram apostar nela.

Annick Irakoze, a dona da casa vivida por Eliane Umuhire, recebe essas outras três mulheres — a ativista americana Peyton, interpretada por Ella Cannon; a freira católica Jeanette, personagem de Charmaine Bingwa; e Mutesi, papel de Bola Koleosho —, trancadas num pequeno compartimento embaixo da cozinha. O marido de Annick, Martin, de Brian Mganga, as abastece da pouca água e comida que consegue, mas não pode encontrá-las com a regularidade conveniente. Desse modo, Annick, Peyton, Jeanette e Mutesi são forçadas a racionar os mantimentos, tendo de improvisar um espaço para as necessidades fisiológicas, já que porta só abre por fora. Ao longo de 81 dias, as quatro observam, por meio de uma pequena abertura que dá para a rua, as mudanças trágicas no cotidiano do país. A sequência em que a irmã Jeanette flagra François, de Tongayi Chirisa, seu ex-aluno e ex-membro do coral da igreja do bairro, chacinando um grupo de meninos tútsis, ponto alto do filme, é emblemática do quanto Ruanda ainda iria sofrer até o encerramento dos confrontos, em 18 de julho de 1994.

Vivendo em relativa paz social, graças a programas governamentais e à intervenção das Nações Unidas, que fomentaram a pacificação e o convívio fraterno entre os doze milhões de tútsis e hutus, Ruanda é hoje o país que mais dispõe de mulheres em cadeiras no Parlamento em todo o mundo, número que gira pelos 60%. Todavia, faltou a Alanna Brown a honestidade intelectual para mencionar a ditadura de Paul Kagame, no poder desde 24 de março de 2000.


Filme: Árvores da Paz
Direção: Alanna Brown
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.