FICA 2022: o nome das coisas Pablo Regino / MTur

FICA 2022: o nome das coisas

Parece que em algum momento da história os humanos descobriram o fogo para, no futuro, ser possível a invenção do fogão à lenha. Assim, a comida caipira poderia ser inventada. Há quem não goste da tradicional comida da roça? Posso sustentar que a resposta é não, baseado em pesquisas científicas comportamentais, significativas. O fato é que, nessas viagens ao interior, procuram-se restaurantes de comida da fazenda como se busca um prêmio. Na cidade de Goiás, é possível encontrá-los com relativa facilidade. Muito provavelmente a galinha não será caipira. São raras hoje em dia. Veremos a comida, disposta ao redor da fogueira crepitante, as panelas rústicas e o caldo fervilhando, o vapor aromático subindo e distribuindo-se para todo canto, provando a veracidade da lei de Fick. Sobretudo, porque os caminhantes da calçada sentem-se atraídos pelo cheiro, que viajou longa distância. Outro fato, normalmente não vemos as pessoas que cozinham. As cozinheiras ou os cozinheiros compõem outro mundo. No cinema, a categoria denominada documentário presta-se a esse fim essencial: dar rosto às coisas que vemos, usamos, desejamos e sentimos. Pitoresca como é, Goiás tem uma pousada onde os quartos são rotulados não por números, mas por títulos espirituosos. Os nomes estão impressos em azulejos, charmosos e ornados, emoldurados e dispostos nas portas dos quartos. Por exemplo: Unha de gato, Colar da rainha, Malícia de mulher, Beijo de frade, Sempre viva, Céu estrelado, Amor agarradinho, Manacá da serra, Dama da noite, Amor em penca, entre outros. Por um impulso natural, pedi para ficar no Dama da noite, mas acabei alojado no Beijo de frade. Penso que os dois são igualmente agradáveis. Os quartos, curiosamente, possuem, em função do nome, uma personalidade. É a natureza inteligente das coisas inanimadas. A identificação com o lugar é coisa muita íntima, pessoal. À semelhança do desejo pela comida caipira na cidade antiga, que parece possuir uma força ancestral, anímica, inexplicável, que acaba tornando o forasteiro parte do lugar. A intimidade se estabelece devido a elementos não racionais, que remetem ao conforto. Esse é o tema do filme “Nós”, de Letícia Simões, um dos mais bem feitos e interessantes do FICA. A beleza das imagens, o conteúdo dos entrevistados, suas experiências num mundo alheio àquele de origem, a relação com as cidades, o conceito de lar livremente interpretado e, por vezes, adaptado, conferem ao longo uma experiência inédita. Karim Aïnouz surge didático, explicando sua relação antiga com lugares e sua ligação com a palavra lar, termo recorrente em sua narrativa. “Eu prefiro a sensação de um lugar, onde eu me sinta em casa”, diz Karim enquanto analisa e tenta definir a palavra casa e suas consequências em sua vida. Noutro momento, o poeta chileno Enver declama poemas em espanhol, alemão e em italiano, mostrando que a escolha da língua corrompe ou enaltece o conteúdo, a forma, o estilo e promove sentimentos diversos, sensações maiores ou menores. De um dos poemas, declamado em espanhol: “Assim é a cidade da minha quarta encarnação. Apesar das bandeiras que flamejam nas varandas, nas janelas, nos olhos azuis, negros, vermelhos e dourados. Temos ruas com nomes de poetas: românticos, irônicos, pistoleiros”. As gentes e a cidade! Para além da sensibilidade artística, o filme possui elevado apuro técnico. Os lugares do mundo explorados, são os lares adotados, para uma vida, por um momento ou por um intervalo de tempo suficiente para gastar a estupefação inexplicável. Letícia explora as diversas línguas faladas como uma forma de resolver o incômodo de não se identificar com o local de nascimento, uma vez que falar outro idioma também significa conhecer outro mundo. Nesse sentido, pernoitar em uma pousada, cujo nome do quarto fornece uma intimidade curiosa, ou descobrir-se morador apenas por entender que o paladar pode ser um anelo com a cidade, relaciona pessoas e lugares de forma a tornar a conexão um estilo de vida, uma proposta de sobrevivência.

Uma pergunta que sempre me assolou, e me incomoda até hoje, é a seguinte: “Como é possível passar pela vida e deixar uma marca?” Registrar uma marca indelével no terreno da existência é uma façanha para poucos. O documentário tem a função de informar. Dá rosto para uma situação. Imprime, na tela, o movimento, a ação, a história desse rosto. Em Goiás, além de restaurantes que servem comida tradicional local, tem um restaurante chamado Casa de Cora, que fica no quintal da residência da poeta Cora Coralina. A comida é boa, muito bem-feita, mas demora-se um pouco para ser servido. O motivo é que só tem uma pessoa para anotar e entregar os pedidos. Mas a sua simpatia compensa a espera. Nunca gostei de gente que maltrata garçons, existem bons e ruins, mas todos estão trabalhando, e trabalho não é divertimento, em grande parte dos casos. Saber da existência do restaurante não implica o conhecimento do rosto que dá boas-vindas, ouve os pedidos e serve com cortesia. Em um documentário, de forma eficaz, mostram-se as personagens integralmente. Rosto, corpo, voz e movimento misturam-se para dar forma e motivo à história narrada. Três filmes da mostra Washington Novaes, do FICA, são exímios em explorar personagens do dia a dia que, sem estarem atuando, são coerentes e interessantes. São eles: “Barragem”, filme contundente de Eduardo Ades sobre o desastre de Mariana e os desabrigados, que lutam por dignidade, num país onde justiça beira o conceito, está mais próxima de uma ideia do que uma certeza, e que também lutam entre si, por causa de entendimentos diferentes sobre a importância da empresa Samarco; “Benzedeira”, de San Marcelo e Pedro Olaia, que apresenta Maria do Bairro, uma mulher trans imersa em uma solidão que, além de cultuada, define seu estilo de vida; e o fascinante “Castelo de Terra”, de Oriane Descout, onde conhecemos a intimidade da vida do casal Oriane e Marreco, sobretudo a obsessão de Marreco — naturalmente instigante — por uma ideia, que, na contramão das possibilidades, tenta realizá-la a todo custo. Nos três casos conhecemos gente, de carne e osso, real demais para caber no papel. Em “Barragem”, o documentário dá um rosto para a desgraça. Em um momento tenso, compreendemos que barragem também é uma barreira criada entre pessoas que não se entendem ou entendem demais sua causa para aceitar o ponto de vista do outro. A barragem tem rostos, profundamente marcantes. Em “Benzedeira”, um rosto para a solidão. “… vida de nega é difícil, hum, mas é gostosa”, diz Maria do Bairro. “Benzedeira” dá, ainda, uma cara para a generosidade, uma vez que a personagem se dispõe a benzer para curar os males daqueles que a procuram. E, em “Castelo de Terra”, visualizamos o rosto da obsessão. A jornada épica de um casal que constrói, a partir de um ambiente hostil e intocado, uma casa inteira, um castelo, usando, literalmente, as próprias mãos. Nos três casos percebemos a maestria na conclusão dos objetivos.

Bom, dar uma cara para a vida não é simples. A minha pergunta, sobre a possibilidade de alguém tornar-se imortal por seus atos, pela realização de uma façanha, especial, que ecoa de modo persistente, pode ser respondida pelo cinema documentário. Pergunta tão humana, que faz refletir o Capitão (Krohokrenhum), líder do povo indígena Gavião, do Pará, do filme “Adeus, Capitão”, do experiente documentarista Vincent Carelli, que confessa para o amigo diretor: “Eu não posso morrer de graça, eu tenho que deixar alguma coisa para o meu povo”. Ali, pessoas comuns, em seus afazeres comuns, são imortalizadas. A garçonete torna-se a heroína de muitos, o castelo de terra, no ermo do Brasil, pode ser a casa que abriga um sonho, e a luta pela nova moradia, de direito, ilustra o significado da exclusão da letargia. Em todos os casos, são os rostos imprimidos na tela que tornam a empatia possível. O caso oposto, o documentário ruim, pode incorrer no risco de tornar a vida dos invisíveis patética. E eles existem.

Inventamos o fogo. Cortamos a lenha e alimentamos as chamas. Depois o fogo espalhou-se, foi democraticamente distribuído, imagino. Cozinhamos o alimento num fogão feito de barro, como aquele de Marreco, de “Castelo de Terra”, para, enfim, criarmos os restaurantes de comida caipira. Quem faz a comida de que tanto gostamos? Um documentário mostrará.

Em seu conto “Eu morreria por ti”, F. Scott Fitzgerald inicia contando que em um restaurante de um hotel, que fica em um lago num recôncavo nas montanhas da Carolina, quatro pessoas do mundo do cinema conversavam em volta de uma mesa. Falavam o seguinte: “— Se conseguem simular Veneza ou o Saara — diz a moça —, então não tem motivo para não simularem a Chimney Rock sem mandar a gente aqui para o leste.

— Vamos simular muito — disse Roger Clark, o homem da câmera. — Poderíamos simular as cataratas do Niágara ou o parque Yellowstone, se fosse só uma questão de cenário. Mas o herói dessa história é o rochedo”.

PS.: Ouvi dizer que o cara dos quase-diários secou meia dúzia de cervejas antes do meio-dia. Ouvi dizer, também, que ele entoa, para os quatro ventos, o seguinte mantra: “é meia-noite em algum lugar”. Por aqui passeia uma jurada da imprensa, belíssima, que divide a sua cerveja. MA, se não me engano!