Novo filme da Netflix é tão absurdo quanto divertido Brook Rushton / Netflix

Novo filme da Netflix é tão absurdo quanto divertido

Dos filmes mais despretensiosos, os de ação certamente são dos que menos primam pela lógica. Ao eixo central dessas histórias, vão aderindo subtramas com um verniz de seriedade, que prometem levantar boas discussões acerca de tópicos que cruzam os anos à prova de qualquer chance de pacificação ou incluir elementos que contribuam para o aclaramento de mistérios sobre determinado personagem, mas que logo são abandonadas e abrem alas a sequências em que uma aura de violência sem limite obnubila por completo o possível brilho de novas possibilidades descritivas, o que descamba para dois cenários: ou o enredo é tão bom que não carece mais coisa alguma, ou é tão capenga que se ousar defender argumentos mais sofisticados, vai dar com a cara contra o muro. Para que se evitem tais desastres, diretores e estúdios estipulam um acordo tácito, a partir do qual fica expressamente proibida qualquer tentativa de inovação mais ousada. Reproduza-se ad aeternum o clichê, glorificado pelo soberano público, que sempre sabe o que quer, e se parece inteiramente perdido às vezes, não é sem razão nem sem culpa.

Primeiro trabalho como diretor do australiano Matthew Reilly, é uma história como poucas, para o bem e para o mal. O roteiro, de Reilly e Stuart Beattie, confuso grande parte das vezes, sopra abordagens ligeiramente filosóficas para temas prementes, a respeito dos quais já se foi muito adiante, mas cuja solução continua longe do fim. O comentário sociológico no que tange à posição da mulher no mercado de trabalho — em especial em postos de comando, e mais particularmente ainda quando desempenham funções ocupadas por homens desde sempre — e as perversões que advêm daí, a exemplo de episódios de assédio moral e sexual, bem como a configuração cada mais vez dinâmica dos países desenvolvidos, que experimentam a crescente participação de imigrantes (legais ou não) em seu cotidiano, abalando convicções até então monolíticas e impactando diretamente a economia, a cultura, o jeito como cidadãos nativos lidam com as imposições éticas e com a justa indignação motivada pela escalada da criminalidade e da violência, uma vez que não há emprego para todos, logo saem de cena e o que prevalece mesmo é a pancadaria em sucessivos quadros voltados a essas execuções. À medida que o verão no hemisfério norte se avizinha, esses filmes começam a pulular, tanto nos cinemas como nas plataformas de vídeo sob demanda.

A oficial JJ Collins, de Elsa Pataky, e despachada para a missão mais importante de sua vida: chefiar a equipe que garante a segurança dos mísseis interceptores sugeridos pelo título, armas de guerra controladas remotamente no caso de um ataque nuclear, acionadas para neutralizar petardos invasores. Collins mereceu esse presente de grego por denunciar um superior que a teria molestado sexualmente, mas parece que o próprio diretor-roteirista se esquece disso, uma vez que a base, um navio no meio do Atlântico, está coalhada de homens. O caráter inflexível da personagem de Pataky, bem como seu temperamento mercurial, por óbvio, são as grandes atrações aqui, até que estoura se desenrola o conflito narrativo que degringola no desvio de dezesseis artefatos nucleares de uma instalação militar russa por terroristas de atuação internacional. Algum tempo depois, vem à tona a revelação de que os inimigos, liderados por Kessel, vivido por Luke Bracey, têm colaboradores entre os soldados americanos. Como não poderia deixar de ser, também é de Collins o encargo de mantê-los do lado de fora do controle, mas uma reviravolta relacionada a um de seus subalternos da a chance de que Kessel precisava para disparar todos os dezesseis mísseis, cada um destinado a uma grande cidade dos Estados Unidos, até culminar na destruição da capital Washington.

Malgrado as cenas de luta sejam coreografadas à perfeição, erros crassos de continuidade, como quando a mocinha cai no mar e começa a subir as escadas rumo ao convés seca (!), botam a perder o esforço de diretor e elenco quanto a fazer do filme uma experiência integralmente divertida. A partir desse ponto, torna-se um desafio acompanhar a saga da anti-heroína de Reilly e Beattie sem esperar por novas mancadas da edição, ainda que, claro, existam os aficionados por esse tipo de detalhe. O mote da desestruturação familiar experimentada por Collins, órfã de mãe desde garota e sofrendo por ter sido obrigada a mandar o pai, ex-militar, para um asilo mantido pelas Forcas Armadas, é criminosamente desperdiçado, quando poderia conferir um pouco mais de substância e sutileza ao corpo da trama. No mais, “Interceptor” fica na água morna do sugerido mas nunca dito, como que fim teriam levado o inquérito sobre a violência sexual contra a abnegada soldado, puxando a história para um final feliz nonsense. A propósito, tente reconhecer Chris Hemsworth, marido da atriz principal, em meio a toda essa barafunda. Mas se não conseguir, não há de ter perdido nada.


Filme: Interceptor
Direção: Matthew Reilly
Ano: 2022
Gênero: Aventura/Ação
Nota: 7/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.