Um dos filmes mais amados pelo público na história do cinema acaba de chegar à Netflix Divulgação / Warner Bros

Um dos filmes mais amados pelo público na história do cinema acaba de chegar à Netflix

As histórias que conhecemos desde sempre às vezes nos surpreendem. Não é incomum que, revestidas pelo manto da tecnologia, essas histórias fiquem quase irreconhecíveis, o que definitivamente não é nada bom. Contudo, se a forma cheia de novos recursos é capaz de preservar o encanto do que habita nossa memória afetiva ainda em tenra idade, a essência daquilo pelo que um dia caímos fascinados também se conserva e se perpetua, malgrado o que passamos a ver seja bastante diverso do que esperávamos. Essas são as surpresas que nos levam a, contrariamente ao que poder ser mais lógico, apreciar ainda mais certos enredos, até redescobrir o sentimento que se nos ligara à primeira abordagem, que se não é mais paixão, também passa longe da indiferença. De uma forma ou de outra, continuamos nos maravilhando, nos emocionando, torcendo por este ou aquele personagem, ansiando pelo final feliz conhecido de há muito, em que o mocinho e sua mocinha casam-se e vivem felizes para sempre. E neste caso, o para sempre é mesmo eterno, por mais de uma vez na vida, em circunstâncias por completo diversas, cruzamos com aquelas figuras, cuja mera lembrança nos remete de pronto à vida que já não temos mais.

“Robin Hood — O Príncipe dos Ladrões” (1991) é cheio de melancolia, flerta com a violência sem nenhum pudor e não tem qualquer pejo de fazer o espectador mergulhar numa depressãozinha controladamente sedutora, mormente no princípio do filme de Kevin Reynolds. O DNA do Robin Hood com que travamos contato ainda pequenos vem em doses homeopáticas, de leve, bem como o romance entre o anti-herói, aqui vivido por Kevin Costner, e sua donzela, que só se insinua mesmo com a devida força na iminência do desfecho, pleno do lirismo de que nos ressentimos todos nos tempos odientos deste nosso carrancudo século 21. O trabalho de Reynolds avança por mais de 140 minutos alternando-se entre lances de uma fé solar e cega no ser humano e passagens de desalento sem fim, em que a fotografia de Douglas Milsome destaca a lugubridade dos cenários escolhidos pelo diretor, cujos bosques densos tornam-se quase inexequíveis por mergulhados num azul mortalmente escuro. As sequências de ação vão se avolumando nesses ambientes, dando uma aura de improbabilidade quanto a se esperar o tal happy end. “Robin Hood” segue por aí, subindo e descendo entre luta e romance, fúria e paixão.

Costner confere ao personagem-título o tom muito particular e apropriado de um nobre que perde o pai, assassinado barbaramente, e tal como o Hamlet de Shakespeare, faz de sua vida um projeto de vingança minucioso, que como todo projeto de vingança, deixa suas marcas. Robin Hood, uma história cuja veracidade nunca se comprovou — outra semelhança com a narrativa do príncipe nórdico fulminado pela necessidade de retaliar a morte desleal do pai, motivada pela cobiça de um tio pelo trono, herança que lhe cabia a ele —, se decide, como todos sabemos, por uma forma de retaliação muito peculiar. Ajudado pelo fiel escudeiro de Morgan Freeman, o mouro Azeem, negro e, por óbvio, muçulmano, que passa a lhe dever a vida depois de um incidente nos trechos iniciais do longa, o personagem de Costner, paulatinamente menos taciturno à medida que se tornam amigos, se dedica a assaltar fidalgos e distribuir o butim entre os aldeães miseráveis da Inglaterra do século 12, uma terra sem lei e sem esperança, em que o próprio rei Ricardo Coração de Leão (1157-1199) não manda, paralisado por incontáveis tentativas de usurpação da Coroa. Quando sente que sua missão está, finalmente, dada por concluída, o tal príncipe dos ladrões do título vai cuidar da própria vida: casa-se com a Marian de Mary Elizabeth Mastrantonio, tomando o cuidado de matar o xerife de Nottingham, interpretado por Alan Rickman (1946-2016), o melhor desempenho do filme, que atentara contra sua honra.

O roteiro de Pen Densham e John Watson opta por espelhar a singeleza da trama original, que Kevin Reynolds contrabalança com enquadramentos inventivos, mudanças de cena inesperadas e a elaboração de um Robin Hood mais ilustrado e leve, que poucos conhecem. A ousadia, mal recebida por alguns, faz de sua versão do surrado conto algo menos previsível, cuja capacidade de divertir aumenta exponencialmente.


Filme: Robin Hood — O Príncipe dos Ladrões
Direção: Kevin Reynolds
Ano: 1991
Gêneros: Aventura/Ação
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.