Suspense de ação com Tom Cruise, na Netflix, vai te hipnotizar por 130 minutos Divulgação / Paramount Pictures

Suspense de ação com Tom Cruise, na Netflix, vai te hipnotizar por 130 minutos

Mocinhos e vilões estão cada vez mais parecidos, e isso além de uma lástima é um perigo à civilização. Ninguém distingue mais a olho nu quem presta de quem não vale absolutamente nada, e por trás do famigerado carisma escondem-se grandes, inomináveis monstros. Por outro lado, personalidades meio nefastas, até macabras podem reservar heróis (ou, mais precisamente anti-heróis) dignos de registro e de todo o nosso respeito. Malgrado a cara emburrada de pouquíssimos amigos, ainda que emoldurada por uma estampa interessante, esses candidatos a salvadores do mundo largam seus projetos individuais, família, sonhos, ambições profissionais para servir a um coletivo que quase nunca os reconhece e até o repele em muitas circunstâncias. Como se flutuassem alguns metros acima dos simples mortais, essas criaturas superiores nem têm vontade de esfregar seus poderes extraordinários nas fuças de ninguém, e sem dúvida esse se torna outro de seus admiráveis predicados. Quem resiste a tamanha abnegação humanista, a tal nível de sensatez, a tanta sensibilidade, ainda que embalada por uma rudeza impenetrável?

O personagem-título de “Jack Reacher — O Último Tiro” (2012), o primeiro de uma franquia que, inexplicavelmente, não foi longe — talvez por um excesso de Tom Cruise na cadeia “Missão Impossível” —, encaixa-se perfeitamente na descrição acima. Um dos personagens mais enigmáticos da carreira de Cruise e do cinema, Reacher, ex-inspetor militar que abandona uma trajetória que teria tudo para ser brilhante e passa a viver de biscates como justiceiro profissional, não tem paciência para o tédio nem transige com a monotonia: se a vida começa a ficar chata, é hora de jogar tudo para o alto e começar de novo. O protagonista de “One Shot”, romance policial do inglês Lee Child, também parte de uma coleção, amalgama Dirty Harry, James Bond e uma boa pitada de Hannibal (abdicando do canibalismo, mas com a psicopatia do facínora redobrada), sem dor na consciência, se é que ele tem algo que remotamente se assemelhe a isso. Reacher é uma composição minuciosa de seu intérprete, espinafrado em muitas ocasiões, e com razão, mas, justiça se lhe faça, um ator que entende como poucos seu ofício. O gosto de Cruise por encabeçar enredos narrativamente ingratos somado à conhecida aversão a dublês, que o impele a despencar de alturas incalculáveis e dirigir ele mesmo a toda velocidade nas sequências de perseguições, se converte num capital de grande valor, quiçá fundamental, em produções como essa. Tanto empenho até passa por um ligeiro desdém da vida como ela é, o maior ponto de contato entre o personagem e o homem que o encarna — e um excelente pretexto para assistir ao trabalho de Christopher McQuarrie.

O diretor apresenta Reacher a partir de um roteiro, seu e de Child, sem grandes surpresas. O personagem de Cruise está tentando realizar uma de suas tarefas, e o espectador acompanha tudo de um ângulo privilegiado, o próprio alvo do atirador. São disparados seis tiros, mas apenas cinco encontram o destino; a prisão de James Barr, o veterano do Exército vivido por Joseph Sikora, em alguma medida relacionada ao episódio, desencadeia quase todos os eventos que se seguem. O detetive Emerson, de David Oyelowo, prende o suspeito, e o procurador Alex Rodin, personagem de Richard Jenkins, só pensa em condená-lo. Rodin é a típica raposa dos tribunais, vencendo um caso após o outro, o que o coloca em rota de colisão direta com a filha Helen, a advogada de Rosamund Pike, que tem sua merecida chance de brilhar aqui, à diferença do que acontece em filmes como “Educação” (2009), de Lone Scherfig, por exemplo. Sempre acossada por suspeitas quanto aos métodos do pai, que têm redundado em condenações sem provas e inocentes no corredor da morte. McQuarrie elabora bem o que argumento que se transforma num dos leitmotive mais relevantes do longa, graças ao talento soberbo de Pike, que sabe como ninguém torcer enredos a seu favor. Não obstante contrariar a vontade do pai, Helen aceita defender Barr, o que implica enfrentar Rodin nos tribunais. Enquanto isso, Reacher prepara-se para dar cabo do personagem de Sikora, mas conforme se aproxima da advogada — relacionamento sem direito a romance, mas permeado por muita tensão sexual —, mais se convence de que deve poupá-lo e juntar-se a ela na defesa do ex-militar.

“Jack Reacher — O Último Tiro” quase fica monótono, com tudo girando em torno da solução do caso, ainda que as participações de Werner Herzog como o vilão Zec movimentem a trama aqui e ali. Contudo, são mesmo as contradições essenciais de seu protagonista que promovem o filme à categoria de história eminentemente cinematográfica, sem mencionar as cenas de ação, muito bem conduzidas por Christopher McQuarrie, por óbvio. A atuação de Tom Cruise, por seu turno, é densa o bastante para fazer de Reacher um personagem que transcende a condição de mero herói de filme de ação e quase descortina seus medos mais íntimos. “Quase”, porque é necessário conservar algum mistério em histórias como essa.


Filme: Jack Reacher — O Último Tiro
Direção: Christopher McQuarrie
Ano: 2012
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.