Tão brutal quanto bonito, filme de amor da Netflix é diabolicamente provocante e inteligente Dominic Miller / Netflix

Tão brutal quanto bonito, filme de amor da Netflix é diabolicamente provocante e inteligente

Ricos ou pobres, jovens ou velhos, up-to-date ou old school, todos estamos sujeitos às intempéries do amor. Há quem diga que um relacionamento amoroso só se concretiza mesmo se moldado à força de algum conflito. O que ninguém diz é como definir o momento em que essa discordância abdica de sua suposta natureza colaborativa e passa a se constituir um elemento a mais quanto a minar a energia, a luz, o fogo, o sentimento mais profundo que fez duas pessoas encantarem-se uma pela outra. Mais que uma questão de temperamento, ajustar as muitas arestas que um casal pode achar — e fatalmente acha mesmo — na convivência mais próxima é um processo doloroso por si só, mas necessário, a fim de que reste claro, de uma vez por todas, até onde cada um está disposto a ir em nome do que dizem sentir quando juntos. Sem cobranças depois, evitando-se o quanto possível que o amor seja torpedeado por questões comezinhas, mas potentes o bastante para reduzi-lo a uma pálida lembrança, a quase nada. Ainda que todos esses cartesianos acordos sejam mais afetos a outra natureza de vínculos.

Não obstante todo o aporte publicitário, “Malcolm & Marie” (2021) pode ser classificado como um filme experimental, e eis uma de suas grandes qualidades. Trabalhado pelo diretor Sam Levinson à luz da linguagem teatral, os personagens-título, vividos por John David Washington e Zendaya, passam os 106 minutos de projeção praticamente no mesmo cenário, digladiando-se por meio de monólogos quilométricos, os famosos bifes. O casal acaba de voltar de uma mostra em que Malcolm, diretor de cinema, acabara de estrear mais um filme, desta vez com estardalhaço por parte da crítica. Tudo o que se sabe acerca do pretenso bom desempenho do lançamento é dito pela boca do próprio Malcolm, de um Washington que vem sabendo controlar alguns trejeitos irritantes desde que passou a ser microscopicamente observado graças à excelente recepção de “Infiltrado na Klan” (2018), o delirante (e delicioso) libelo antirracista de Spike Lee, vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Adaptado junto com David Rabinowitz, Kevin Willmott e Charlie Wachtel. Visivelmente mais contido, malgrado os embates em que quase chega as vias de fato com Zendaya, o intérprete de Malcolm não faz nenhuma questão de tentar se defender do personagem. Neste particular, a direção de Levinson, um homem branco, se revela primorosamente corajosa ao não se furtar ao embate com um politicamente correto dia a dia mais desabrido e fazer com que o personagem vomite as tantas verdades ocultas por uma personalidade nefasta, revestida por uma pele escura, mas que poderia ostentar qualquer outra cor. O diretor da ficção é o típico canalha fundamental rodrigueano, e ainda que o argumento racialista não avulte aqui, Malcolm dá um jeito de fomentar uma disputa de negros contra brancos ou, mais precisamente, de um negro sofisticado contra brancos que ele decerto qualifica como simplórios, pedantes, quase envergonhados em ter de reconhecer o destaque de alguém de fora de seu círculo habitual, e Levinson, o diretor de carne e ossos, diz textualmente a quem se refere. As ofensas do personagem aos “branquelos” do L.A. Times e outros veículos do mainstream jornalístico americano não passam despercebidas, por óbvio, mas também não é este o ponto, felizmente. Depois de voltar sua metralhadora giratória contra os críticos grã-finos e reacionários das grandes corporações midiáticas dos Estados Unidos — que também casualmente são brancos, malgrado a questão racial no país seja, até o momento, um cisto na história americana, como todos sabemos —, Levinson retoma o leme do assunto que verdadeiramente o motivara a rodar seu filme, o individualismo, a capacidade de fazer escolhas de que todos, brancos e negros, asiáticos e hispânicos, judeus e árabes, somos revestidos. O uso dessa palavra não é debalde: Malcolm é um individualista, mas no sentido mais deturpadamente patológico desse termo. Seu egocentrismo é tão avassalador que o impede de reconhecer que se apropriara da história da companheira, uma ex-viciada em drogas em recuperação, e a partir do que sabia da vida dela elaborou o filme supostamente badalado. Sua perversidade é tão falta de limite que o cega, a ponto de nunca reconhecer a importância de Marie para além da vida a dois e, pior, considerar-se a grande vítima do jeito de ser, para ele, melodramático da namorada, o que a moçada chama de mimimi.

Cabe a Zendaya os momentos genuinamente lapidares do texto de Levinson, ao longo dos quais a protagonista faz, sim, recrudescer a carga de melodrama do roteiro, mas tão elegantemente que, por mais que a tensão suba, passa-se a considerar inverossímil que um dos dois cometa um desatino — mesmo quando Marie, tomada de uma fúria que nunca transborda, apanha um punhal, tanto mais reluzente na linda fotografia em preto-e-branco de Marcell Rév, e se esgueira para perto de Malcolm, sem prejuízo das barbaridades que despejam um sobre o outro, ainda que se note certo pânico no semblante do macho-alfa de Washington, e é impossível não achar uma graça sádica nisso. Talvez até fosse o caso de dar um destino trágico ao personagem, que poderia, por evidente, resvalar também em Marie, tão psicóticos são. Quando se pensa que a cachorrada toda tem desfecho e eles, enfim, vão acabar na cama, os dois voltam a se atacar, mas que atire a primeira pedra aquele (ou aquela) que nunca se viu enredado por essas situações patéticas com que nos encurrala o amor, o ridículo, às vezes o patético da vida, nas quais chafurdamos gostosamente, uma, duas, mil vezes durante uma existência pequena para tantas idiossincrasias de criaturas eminentemente complexas.

A edição leve de Julio C. Perez IV mantém a narrativa quente, mas sempre suportável, proporcionando a John David Washington e Zendaya oportunidades equivalentes de brilhar, mesmo que a mim me pareça que os bifes da atriz sejam muito mais indigestos. Admito que cheguei a pensar que em algum momento “Malcolm & Marie” descambaria para um rosário de vitupérios destemperados de um diretor contra seus inimigos naturais — nós, os sanguinários críticos —, tendo como pano de fundo a discussão acerca da asquerosa injustiça racial que flagela afroamericanos de uma maneira especialmente bárbara, tema importantíssimo, mas que se perderia num filme como este. James Baldwin (1924-1987), negro e um dos maiores intelectuais da América, disse em “Da Próxima Vez, o Fogo — Racismo nos Estados Unidos” (1967), que era necessário matar o racismo, não os brancos. Eu, brasileiro e não-branco, atrevo-me a assinar embaixo.


Filme: Malcolm & Marie
Direção: Sam Levinson
Ano: 2021
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10